A cor ecoa – Por Karimme Silva.
Montagem teatral: Manifesto Pauta NegrA.
Montagem: Grupo de Teatro Universitário - GTU/UFPa (2018)
Karimme Silva[1]
Desconforto. Eis a palavra que resume as primeiras cenas da montagem Manifesto Pauta NegrA, resultado do processo encenado pelo Grupo de Teatro Universitário - GTU/UFPa. O espaço cênico é reduzido, mostrando certa proximidade entre as atuantes e o público. Formado exclusivamente por mulheres, o grupo levanta pautas referentes ao racismo e ao preconceito, não somente da mulher negra, mas da mulher lésbica e trans. São narrativas carregadas de mulheres fortemente presentes em cena, criando um eco vocal e de danças que consegue preencher todo o ambiente. O início da montagem evidencia a crueldade física e mental que estas mulheres costumam absorver. É teatro, mas é real. Não há nada de entretenimento.
O elenco é extremamente hábil em diferenciar opressores e oprimidos no espaço cênico. Há a violência verbal e física, representada por duas atuantes de máscara. Quando a pele é negra, as máscaras sempre são brancas. Duas atrizes realizam a árdua "tarefa" de agredir uma companheira de cena, puxando seus cabelos e xingando, como se a agredida representasse um animal. Com uma máscara remetendo à figura de Anastácia, a atriz exprime toda uma pulsação corporal de quem sofre, mas resiste. É uma cena difícil, tanto pra quem executa quanto pra quem assiste, mas viver isso na pele (ou por causa dela), faz com que se redimensionem as expressões.
Algumas cenas debatem outras questões estéticas, juntamente com a cor da pele: o peso e o cabelo também são formas das mulheres se sentirem oprimidas; se não seguem um chamado "padrão", não são aceitas. Mas o que é ser aceito em um país onde a cor da tua pele já te põe em um nível de desigualdade enorme? Política, crime, trabalho, renda: onde quer que se perceba, pessoas negras e brancas parecem viver em dois países completamente diferentes. "Não existe racismo no Brasil..." e outras falácias absurdas estão aí, junto com a desigualdade, as mortes, as agressões e os preconceitos. Ser mulher, negra, lésbica/trans e amazônida é estar nesse contexto.
A peça explora tanto as narrativas pessoais das atrizes quanto os relatos de jornais, as estatísticas de assassinatos e se utiliza disso para gerar no público o mesmo efeito: feche os olhos e imagine que neste momento há uma criança negra sendo estuprada. Difícil imaginar, né? Mais difícil ainda é estar nesse lugar. O público é confrontado a todo momento, não apenas pelas narrativas e cenas, mas pelo espaço reduzido e a iluminação que gera esses estados.
Destaco três momentos da montagem:
- 1) O trabalho de corpo realizado pela atriz Iris da Selva. É possível perceber ações muito bem demarcadas, que iniciam com o corpo da atuante no chão, se expandindo em potência até que ela se coloque de pé e o momento em que defronta o público: "A culpa não é minha. A culpa é de vocês. A vergonha é de vocês. O medo..." Medo, vergonha e culpa são para quem sustenta o preconceito. A atuante compõe também a trilha sonora do manifesto. São mulheres que tocam, cantam, compõem. A força da montagem e o seu eco também residem no som.
- 2) A cena onde as atrizes Daisy Feio e Dalila Costa rememoram suas vidas, falando das relações com suas mães. Um balanço colocado em cena confere a ela um caráter lúdico. Memórias de mães e filhas, de mulheres que se sustentam e se fortalecem nas relações familiares e afetivas. As memórias desnudam-se como ato de resistência.
- 3) A cena final, na qual todas as atrizes dançam e dispõem seus corpos enquanto estrutura de um elemento maior, a figura da árvore. A atriz Tertuliana Lopes impõe-se como uma potente figura: a matriarca, a guardiã de todas as outras. Neste final, percebe-se o quanto o conjunto se integra, não só a nível de narrativas ou das vivências enquanto mulheres negras, mas em um sentido técnico, onde todas são raízes e seus corpos juntos encarregam-se de compor visualmente e simbolicamente, uma estrutura ainda mais forte, como uma potência em ato, uma força de existir. São organismos que possuem a capacidade de se manterem unidos, regenerarem-se e agirem em conjunto. Assim mostram-se as atuantes. Elas existem e resistem juntas.
Há que se mencionar e destacar a ação do Grupo de Teatro Universitário - GTU 2018 de propor e realizar uma ideia de encenação com uma equipe composta exclusivamente por mulheres negras. Este recorte se faz necessário do lugar de onde as atuantes vêm e onde estão. É de onde se valida e se sustenta o discurso. Pauta NegrA ainda vai além disso. É um manifesto de vozes em conjunto que precisam ser gritadas, escancaradas, cuspidas. De tantas vozes que gritam todos os dias em vários lugares. É um manifesto potente, urgente, extremamente necessário. É sobre o desconforto real e diário de muitas mulheres negras. E uma resposta na cara de muitos focinhos brancos.
03 de Julho de 2019.
[1]Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA, artista-pesquisadora e mestranda do programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/UFPA).
Referência
EVARISTO,
Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte:
Nandyala, 2008.
FICHA TÉCNICA
Montagem teatral:
Manifesto Pauta NegrA
Elenco:
Carla Baía, Daisy Feio, Dalila Costa, Iris da Selva, Ka Diaz, Julliana Matemba, Lorena Bianco, Penélope Lima, Sarah Prazeres, Thais Squires, Tertuliana Lopes, Sidiane Nunes e Silvana Cruz.
Concepção e encenação:
Ingrid Gomes
Dramaturgia Coletiva
Figurino:
Lenilce Baía e Marina di Gusmão
Preparação Corporal:
Assucena Pereira
Composição Musical:
Iris da Selva e Julliana Matemba
Sonoplastia:
Carla Baía, Daniella Gatinho, Iris da Selva, Julliana Matemba e Ruht Silva
Cenografia:
Camila Sousa e Winnie Buendía
Iluminação:
Natasha K. Leite
Comunicação:
Daisy Feio, Ingrid Gomes e Tarsila França.
Fotografia e Arte de divulgação:
Tarsila França
Concepção Coreográfica:
Carla Baía
Apoio:
ETDUFPA
PROEX
NOVOS ENCENADORES - GTU
TUCB
UFPA