A Subjetividade do Espetáculo “Fale Com Estranho” – Por Amâncio Monteiro

Montagem teatral: "Fale com estranho"

Montagem: Coletivas Xoxós

Amâncio Monteiro[1]

Na noite de 21/06/2022, eu tive a oportunidade de conhecer o "Teatro do Desassossego", um Laboratório de Experimentações Artísticas que dá residência-artística ao grupo paraense de teatro "Coletivas Xoxós", que estava em cartaz com o espetáculo "Fale Com Estranho". Um teatro de resistência da nossa cidade! Nesta crítica, falarei um pouco a respeito do espetáculo exibido, apresentando minhas impressões gerais acerca de toda essa experiência incrível que vivi.

O Teatro fica localizado na Rua Dr. Malcher, 287 - Cidade Velha. Porões da Casa Cuíra. Uma referência bem fácil, principalmente para quem chega ao local utilizando o transporte coletivo, é a linda e histórica Catedral Metropolitana de Belém, "Nossa Senhora Das Graças" ou simplesmente "Igreja/Catedral da Sé", como é mais popularmente conhecida por nós, belenenses. A rua Dr. Malcher fica na lateral da igreja, pela esquerda ou direita, dependendo por onde você chega.

A Cidade Velha, bairro onde fica a Casa Cuíra, que dá vida ao Teatro do Desassossego, é o bairro mais antigo da nossa cidade. A história de Belém começou lá, em 1616. Por isso, talvez, ainda consigamos contemplar, em sua grande maioria, as características do local: suas ruas estreitas, prédios coloniais históricos, com azulejos portugueses etc. A Casa Cuíra também tem toda essa arquitetura antiga, o que torna o local mais especial. O porão, onde estava montado o teatro, possui o teto baixo, como era de costume nessas antigas construções.

Ao adentrar no local, fui recebido de forma muito educada por duas mulheres, que me deram boas-vindas ao teatro, junto com pequenas instruções de cuidados, como usar máscara e não machucar a cabeça no teto baixo. Também recebi um ingresso físico, que é um ímã de geladeira. Uma linda lembrança! Entrando com cuidado, comecei a reparar em como tudo estava montado: havia vinte e quatro lugares, no total. Doze cadeiras de um lado e doze do outro. Por o local ser bem estreito, as cadeiras formavam três fileiras com apenas quatro cadeiras do lado da outra, sempre tendo as de trás mais altas, permitindo uma boa visualização da apresentação a todos. Cadeiras pretas e confortáveis. O local todo estava pintado de preto.

O "palco" ficava no centro, com uma espécie de lona preta estendida e dobrada no chão, que ia de uma arquibancada à outra preenchendo todo esse espaço, inclusive nas laterais. Em cima da lona, bem centralizado, havia outra lona, mas de cor branca, bem mais curta e de formato quadrado com as bordas laranjas. Em cima dessa segunda lona também centralizado, tinham quatro sacos, aparentemente com algo dentro, que eu ainda não conseguia identificar, mas que eram consistentes o suficiente para deixá-los em pé. Entre os sacos, havia um quinto objeto, um pequeno vaso de plástico com areia e uma planta dentro. Não dava para identificar se era artificial. Fora da lona branca, quase encostando nas primeiras fileiras de cadeiras, havia uma espécie de caixote, parecido com uma gaveta, aparentemente reaproveitado, que trazia rodinhas com presilhas em cada uma de suas pontas. Possuía uma cor clássica de madeira, mas apenas uma delas estava cheia de areia; uma areia mais densa, parecendo pequenas pedrinhas. Alguns detalhes na decoração do lugar me chamaram a atenção, como, por exemplo, a reutilização de potes de vidro (talvez de azeitona ou de picles) transformados em lustre. Algo simples, belo e de muito bom gosto.

Na parede pelo lado direito (para quem chegava ao teatro) havia um quadro apoiado no batente, que trazia o rosto de um garoto com a aparência séria, que chamava atenção, como aquelas fotografias antigas, onde era muito comum as pessoas posarem dessa forma. Não posso deixar de lado a iluminação do lugar, com todos os elementos essenciais para o teatro: quatro canhões refletores posicionados em cada ponta do quadrado, que formavam o "palco", entre outros dispositivos de luz, menores. Esses detalhes trazem muito profissionalismo ao espaço e para o Coletivas Xoxós. A essa altura, ansioso pelo início do espetáculo, eu começava a imaginar as diversas formas poéticas que esses objetos poderiam compor nas cenas. No final das contas, fui surpreendido de forma muito perspicaz.

O espetáculo começa com a diretora, Andréa Flores, dando uma pequena introdução sobre a adaptação do espetáculo e informando que precisaríamos pôr nossas máscaras, para evitar possíveis desconfortos devido a manipulação da areia que teria durante a apresentação. Em seguida, a diretora e mais uma atriz, posicionaram duas cadeiras ao lado das arquibancadas, uma sentada de um lado e a outra no lado oposto. Segundos depois, entra o ator, vestido com uma calça social, um blazer e descalço. O blazer e a calça eram quase da mesma cor, um caqui, tendo a calça uma tonalidade mais escura. O ator caminha em direção a parede oposta ao quadro, aparentemente de olhos fechados e vai se deitando no chão, esticando e apoiando as pernas na parede e trazendo-as cada vez mais próximas do seu tórax... quando chega, ele ainda vira um pouco o seu quadril para a direita e encosta a ponta dos pés no chão. Uma sensação de agonia e dor me invadiam conforme eu via esse "contorcionismo" acontecendo.

Logo depois, o ator quebra a "quarta parede" ou não? Dialoga com o público ou com ele mesmo? Essas perguntas vão se tornando constantes na minha mente, conforme vou assistindo ao que acontece com o "Natanael", nome da personagem. O espetáculo se desenvolve em torno desse homem estranho, sombrio, perturbado... Que vai nos contar o que aconteceu com ele, ainda quando criança. Nesse processo, vão sendo desvendados mistérios que compunham o cenário; descobrimos que ele é o garoto sério que está no quadro, os objetos que estão dentro dos sacos e muito mais. Todos os elementos descritos no cenário vão se tornando quase como coadjuvantes no decorrer da performance. Natanael é uma caixinha de surpresas, quase indecifrável.

A maquiagem pesada no rosto do ator, que o deixava com um aspecto bastante pálido, além de outros elementos, como, o quadro e o caixote com areia, que me davam a ideia de que ele seria uma espécie de "alma atormentada", que iria narrar como sucedeu sua morte: teria sido assassinado, um acidente ou nenhum dos dois?! Conforme ele vai nos contando, a estória começa a se tornar uma "metamorfose ambulante", estorvando o espaço-tempo continuamente, fazendo a minha mente dar um "bug". Adoro quando isso acontece, pois é sempre sinal de um bom roteiro. Esse é um dos aspectos mais interessantes que posso atribuir ao espetáculo: a imprevisibilidade!

Natanael define o antagonista como "O Homem de Areia", uma figura aterrorizante que seus pais utilizavam sempre que queriam assustar ou impor limites para o garoto, fazendo ele demonizar essa "criatura". Em determinado ponto, o garoto passa a acreditar que o homem de areia é o advogado da família, chamado "Coppelios", e conforme algumas percepções, ele apresenta o advogado como sendo o responsável pelo homicídio de seu pai. A esse ponto, percebo que o Natanael não está morto, o que não significa que ele não seja uma "alma atormentada", devido a todos esses traumas que vão sendo retratados.

Um ponto chave do espetáculo ocorre quando uma voz em off começa a ecoar em cena: uma voz feminina, que vai explicando a Natanael que tudo em que ele acreditava estava apenas em sua mente, que ele havia criado esse "monstro" para tentar lidar ou culpar alguém pela perda de uma pessoa tão amada. Eu não consigo ter certeza de qual personagem se tratava essa voz, se era de "Olívia", que em determinado momento tem seu nome gritado pelo protagonista, em uma cena bem icônica: Natanael retira do caixote de areia um boneco de pano, do tamanho de uma criança de dois anos de idade, mais ou menos; ele vai girando, balançando e sacudindo a boneca e dizendo: "Não, deixa ela! Deixa os olhos dela! Os olhos dela não!". Tudo isso embalado por uma trilha sonora envolvente, que aumenta e diminui conforme os movimentos feitos pelo personagem, além de contar com os efeitos de luz. Tudo isso acontece numa sincronia perfeita, deixando a cena intensa demais.

Ainda falando sobre a trilha sonora, que acompanha o espetáculo, me remetia a algum filme de suspense, horror, terror psicológico, dos anos 80, 90, trazendo constante tensão durante toda a apresentação. A luz cenográfica também contribui muito para deixar o espetáculo eletrizante, fazendo o espectador pensar, imaginar, principalmente em momentos de total escuridão. Outro elemento importantíssimo ainda não mencionado, são os "olhos", que aparecem constantemente nas falas de Natanael. O próprio "homem de areia", atacava as crianças dessa forma, "devorando os seus olhos". Em determinado momento, o personagem usa um projetor, apontado para a parede, onde começa a mostrar fotos bem complexas, parecendo desenhos feitos à mão por ele quando criança, e em todos esses desenhos percebi que havia, de alguma forma, um olho. Há um momento bem forte onde Natanael olha nos olhos da plateia e pergunta: "Quem são esses olhos que me encaram?!"

Conforme o espetáculo ia terminando, fui tendo a percepção de que Natanael estava em uma espécie de processo psicanalítico durante sua vida inteira, ou não. Quando aquela voz em off se dirigia a ele, era de forma muito amável, podendo ser sua mãe, uma namorada ou uma analista... estaria ele em uma clínica psiquiátrica?! Na sua casa?! Na sua mente?! Depende da forma como você o entende. As copiosas nuances oferecidas por ele, nos fazem mergulhar em nossa própria psique, questionando o tempo todo se o que estamos vendo é realmente aquilo que pensamos. Isso ficou extremamente claro quando conversei com alguns colegas sobre o que eles haviam entendido do espetáculo e surgiram inúmeras teorias.

Preciso de um parágrafo para falar sobre a performance do ator Leoci Medeiros, que dá vida ao personagem Natanael. Medeiros foi uma agradável surpresa, pois a complexidade de seu personagem e do espetáculo, não poderiam ser feitos por qualquer ator. Todo o trabalho por trás do espetáculo apresentado pelo Colevitas Xoxós merece aplausos, mas em especial o ator. A atuação de Medeiros submerge o espectador no universo do seu personagem durante quase uma hora ou mais, de forma veemente. Temos aquela infeliz sensação de que algo bom passa muito rápido. Ele conseguia passar toda a dor, insegurança, medo, raiva e ironia do seu personagem, apenas com o olhar. Ao final da apresentação, foi perceptível o cansaço agudo do ator.

A melhor forma de definir "Fale Com Estranho" talvez seja com a palavra, "subjetivo", que, por sua vez, não pode se dar por apenas uma definição. O espetáculo é carregado de estranheza, agonia, obscuridade, subconsciência, medo, poesia, frenesi etc. Cada espectador pode ou não, se identificar com algo que acontece. O íntimo que é criado entre representação e público é quase tangível. Tudo ocorre, praticamente, de forma ininterrupta, fazendo com que o público fique arrebatado com o que está vendo, relaxando apenas quando tudo termina. Fiquei encantado com o profissionalismo do grupo, tanto nos aspectos técnicos quanto nos comportamentais. Estou ansioso para acompanhar os próximos espetáculos que o Coletivas Xoxós irá apresentar.

28 de Junho de 2022

[1] Graduando do Curso de Licenciatura em Teatro UFPA; crítica produzida como atividade da disciplina Produção textual;   

Ficha Técnica

Dramaturgismo, Concepção de Sonoplastia e Atuação:

Leoci Medeiros.

Assistente de Dramaturgismo:

Yasmin Ramos.

Assistente de Direção e Operação de Sonoplastia:

Vanessa Lisboa.

Voz em off:

Naisha Cardoso.

Concepção de luz:

Patrícia Gondin.

Projeto Gráfico, Fotografia Cênica e Operação de Luz:

Danielle Cascaes.

Concepção de Figurino e Maquiagem:

Coletivas Xoxós.

Laboratório de Performance Vocal:

Thales Branche.

Assessoria Terapêutica:

Marcos Vinicius Lopes.

Assessoria de Imprensa e Multimídias:

Lucas Corrêa.

Assessoria Psiconceitual e Direção de Palco:

Roberta Flores.

Encenação e Anatomia Cenográfica:

Wlad Lima.

Direção Cênica:

Andréa Flores.

Residência Artística:

Teatro do Desassossego.

Realização:

Coletivas Xoxós.