A voz que me resta para além do drama carioca? “Me dá só um dia”: O Espetáculo Gota D’água como arquétipo e metáfora social - Por Matheus Amorim
Montagem Teatral: Gota D'água - A Voz Que Me Resta.
Montagem: Experimento - Coletivo de Teatro
Matheus Amorim[1]
Dos autores brasileiros Paulo Pontes e Chico Buarque, o drama Gota D'água grita em seu último dia de temporada no vilarejo do Meio-dia. Corpos dispostos em coro ressoam, a fala dividida me lembra um jogral grego de intenção alá Bertold. "Depressa, bebe, come, lambe, goza, mas se quem faz justiça nesse mundo me escutar..." Sento-me perto da casa de Joana e lá desdobro a vista na passarela disposta como vilarejo, dois palcos centrais fecham a caixa preta. Tenho que pontuar inicialmente a força causada pela visualidade, a destacar, cenografia e figurino! Sem pompas, nem grandes paletós, apenas máquinas de lavar e um chão de favela nas paredes costuradas por madeira colorida.
Um espetáculo de margem, tanto dos corpos intérpretes como das personagens assumidas; os figurinos, tecidos à brechó anos 75, assumem sem grandes riscos uma volta no tempo, demanda também assumida pela estética textual. Esses dois fatores reajustam a ótica, requerente da dualidade humana do teatro: público e atores num entrelaçamento contínuo, um se fazer entender-se, um ouvir indagatório, um olhar por outra íris, já que o espetáculo propõe-se a trazer uma história a muito contada, Bibi Ferreira que o diga. Contudo o teatro não é apenas literário, ou imagético, reside sim nesses campos, mas já migrou para espaços outros que perpassam não só o corpo mais o espaço cênico como sentinela metafórica.
Não tratarei a encenação desta obra como um trabalho musical, pois a mesma perpassa por outros territórios que estão para além do que seria musical, assim como as obras musicais possuem um arranjo tanto nos diálogos quanto em seus números musicais que ocupam outro lugar dentro da espetacularidade cênica. Contudo, é necessário fazer nota dentro de Gota D'água sobre sua parte musicada que talvez seja o termo mais apropriado para tratar a proposta dada.
O fato é que dentro do espetáculo as canções ocupam muito mais um lugar de costura dramatúrgica do que propriamente contar a história, já que pouquíssimas vezes a força interpretativa sobressaiu das partituras e ações físicas geridas a partir do canto. Salvo os números em conjunto muito bem construídos vocal e cenicamente, havia uma harmonia que preenchia o coro e, por conseguinte preenchia a cena de uma verossimilhança palpável, muito bem disposta entre as músicas populares apresentadas.
É interessante agora olhar quatro pontos importantes da compreensão estética e dramática da obra, que talvez sejam os difusores de muitas observações em Gota D'água. O primeiro que se pode imbuir é o tempo; duração e trajetória do espetáculo. De fato a tragédia se propõe a um longo passeio pela história que naquele momento atravessa a protagonista Joana, acoplando dessa forma, outras histórias que estão adjacentes a sua, ou que são partes integrantes dela, como o casamento de Jasão, seu fracassado relacionamento anterior com Alma, filha de Creonte, dono da pequena vila onde moram. Não desacredito na potencialidade do texto original, mas acredito que poderia ter havido uma sensibilidade maior no recorte da obra e perceber para que público se faz espetáculo em Belém, principalmente no que diz respeito ao tempo. Gota D'água é um espetáculo longo. Pois há um momento em que a obra já alcança um pico emocional e energético forte e comovente o suficiente para poder levar a obra para seu desfecho, contudo há uma escolha na encenação em caminhar mais um pouco, o que ressoa como um prolongamento que por vezes gerou uma falta de foco por parte do público no que estava sendo apresentado, um cansaço, logo a conexão com a história é perdida.
O segundo ponto para ser observado é o que chamarei aqui de "construção voz e corpo do personagem". O drama apresenta personagens naturalistas, por um ponto de vista, mas os mesmos me parecem assentar sobre um tipo de processo de construção muito recorrente no teatro, uma construção a partir de arquétipos, o que não diz respeito ainda sobre reforçar padrões de representação de personagem. Ali percebi um faz de conta diferente, mundos não muito distintos ocupavam o mesmo vilarejo. Um exemplo do que proponho chamar de arquétipos pode ser notado em um coro específico do espetáculo: o coro das vizinhas de Joana, sendo que o arquétipo notado vem da chamada "fofoca". Nota-se ao longo da história que a preocupação deste núcleo, por vezes é mostrar essa relação do querer saber o que se passa, estar a par dos acontecimentos, tornar-se parte do mistério que cerca a trama central.
Outro arquétipo presente é o do mediador, do trabalhador civil, do proletariado, presente no personagem Egeo, que retrata inúmeras vezes uma indignação e revolta coletiva para com a situação financeira que o vilarejo passa. O personagem tenta propor um diálogo com o que chamarei de "Corte" como sendo a figura do personagem Creonte. De certa forma estas construções e alegorias denotam um engajamento de cunho fortemente insuflado pelo protesto. Ponto. Contudo, há de se questionar algo, talvez pela necessidade dramatúrgica já apontada e pelo fato de ter de assumir outro "eus", alguns atores carregaram suas vozes e dicção com mecanismos para convencer o público de que havia um ser outro ali que não eram os próprios atores, o que em alguns momentos, vale ressaltar, deixou um mediador muito importante do espetáculo à deriva, solto, inaudível, confuso e mau dito. O texto! O fato de por vezes não compreender o que era dito se tornou um empecilho na tentativa de comprar a história ali exposta. Contudo este ponto não retira a credibilidade da história e muito menos da encenação, na verdade só revela o quanto o teatro é processual e energético, requerendo sempre uma conexão maior com o seu fazer.
O terceiro ponto que merece destaque é a supracitada encenação, não em sua completude, mas em alguns aspectos como, por exemplo, as opções técnicas feitas nas transições de cena, o que dispara um dilatamento dos tempos cronológico e psicológico presentes na obra; os pólos Bar e Vizinhas se contrapõem e se entrelaçam com o mecanismo de pausa no tempo da cena, e na volta contínua. Outra ação efetivada é a visita de Creonte a Joana, para seu despejo, muito bem resolvida com o que senti ser uma exposição física do tempo psicológico das personagens. Essas interferências feitas no espetáculo é que o tornam espetacular. O fator de não ser apenas texto dado ou música cantada.
O quarto e último ponto que desejo levantar é na verdade um posicionamento sobre algumas definições dadas a crença da personagem Joana, que se pode interpretar de inúmeras formas e levantar também inúmeros questionamentos por aqueles que não têm contato ou conhecimento das religiões de matriz africana. A obra original atribui alguns aspectos no que se refere aos trabalhos feitos dentro de casas, sejam elas de Umbanda, Mina, Candomblé e outras ramificações Africanas ou Ameríndias que talvez sejam mal vistas ou erroneamente interpretadas a partir daquilo que é apresentado cenicamente; a forma como se trata os pedidos feitos a estas casas. Não se trata de negar a licença poética, mas de encontrar outros caminhos para que ela seja feita... acredito que seja necessário, antes de tudo, se sensibilizar com o momento social e político que se vive hoje no que chamamos de Brasil. Entender toda essa avalanche de crimes cometidos pelo ódio religioso que atravessa o físico. Sensibilizar no sentido de perceber como se coloca, em nosso fazer artístico, a imagem desta mitologia, desta crença.
Gota D'água está para além do pão de açúcar, a voz que me resta vem dos becos lamacentos de nossa terra, uma obra que precisa ser questionada, revista, refeita, destrinchada e apresentada de muitas outras formas e olhares diferentes. Gota D'água é um mergulho profundo não somente sobre o mito de Medéia ou sobre nossa contemporânea situação política e social. Mais que isso: essa encenação atual é um disparo sobre os corpos que ocupam o espaço de fazer teatro em Belém, um questionamento sobre nossa produção e incentivo a esta arte. É um pedido: "Pra mim basta um dia, não mais que um dia, um meio dia, me dá só um dia e eu faço desatar a minha fantasia. Só um belo dia, pois se jura, se esconjura, se ama, se tortura, se tritura, se atura e se cura a dor na orgia da luz do dia!".
Evoé.
26 de março de 2019.
[1]
Ator e Graduando em Licenciatura em
Teatro UFPA.
Ficha técnica
Montagem Teatral:
Gota D'água - A Voz Que Me Resta.
Elenco:
Joana: Penélope Lima e Damyse de Oliveira
Jasão: Igor Juan e Athos Brenno
Creonte: Rodrigo Mourão
Corina: Julis Albuquerque
Egeu: Mariô
Alma: Ana Corrêa
Nenê: Vanessa Farias
Estela: Duh Mebarak
Zaíra: Diana Lins
Maria: Penélope Lima e Damyse de Oliveira
Cacetão: Jam Bil
Boca: Andrew Monteiro
Amorim: Igor Juan e Athos Brenno
Xulé: Jordan Navegantes
Galego: Hugo Corrêa
Fotografia:
Danielle Cascaes
Cartaz e divulgação:
Natalie Santana