Cada lágrima é uma partitura de fé, cada gesto uma oferenda estética: o rito da cena na Paixão dos Capuchinhos – Por Raphael Andrade

17/04/2025

Montagem dança-teatral: "Paixão de Cristo dos Capuchinhos"

Montagem: Grupo de Teatro Renascer.

Raphael Andrade[1]

Demorei duas décadas para escrever sobre essa experiência. Porque falar do teatro que me formou é tocar naquilo que me move profundamente. É mergulhar nas águas fundas da minha própria história e emergir com o rosto molhado de lembranças. É falar do que me fez ser artista, professor, pesquisador, doutorando em Artes. É rememorar o instante em que o palco se tornou chão de fé — e o corpo, morada do sagrado.

Tudo começou ali. Num palco simples de igreja (mas nunca simplório), com figurinos de bom acabamento e alma transbordando de arte e de evangelização. As minhas mãos tremem por lembrar desses momentos, os quais irei revelar agora, por esta escrita carregada de sentimentalidades, de lágrimas represadas, de saudades em carne viva.

Há mais de vinte anos, fui convidado a participar de um ensaio da Paixão de Cristo encenada pelos Capuchinhos. Eu, sem nenhuma perspectiva de que aquilo daria certo, entrei, meio desconfiado, no auditório da "Casa da Palavra". Tinha o coração tímido, os olhos curiosos e o corpo ainda em busca de pertencimento. Mas o que encontrei lá me atravessou com a força de um chamado. E, desde então, nunca mais saí da ribalta.

Foi a partir do convite de uma mulher de cabelos longos, pele morena, baixa estatura e uma força cênica inacreditável — Suelen Miguele — que a cena se revelou como destino. Ela se apresentou a mim de forma vital. E continua sendo, até hoje, a diretora do Grupo de Teatro Renascer. Com ela, aprendi a quase tudo o que um corpo iniciante precisava aprender:

— A me posicionar em cena,

— A não dar as costas para o público,

— A pronunciar o texto com intenção e força,

— A ser verossímil.

Mas mais do que a técnica visível, Suelen me ensinou sobre aquilo que não se ensina: a presença cênica como vibração espiritual. Com ela, descobri que o teatro exige um lirismo próprio, um corpo que vibra antes mesmo de pisar o palco, um mergulho inteiro na entrega. Que atuar não é fingir — é transfigurar-se.

Depois de uma década participando de inúmeros espetáculos com o grupo — e carregando comigo cada cruz cênica, cada figurino lavado com emoção, cada palma recebida com os olhos marejados —, ingressei na Escola de Teatro e Dança da UFPA. Lá, conheci os nomes da teoria: Stanislavski, Grotowski, Brecht, Boal, dentre outros. Estudamos a biomecânica, o distanciamento, os sistemas da representação.

Mas percebi que, mesmo sem conhecê-los pelo nome, o teatro que fazíamos na igreja já trazia suas intencionalidades. O corpo popular sabia o que os livros explicariam depois. O suor do ensaio já trazia as marcas do que a teoria chamaria de energia vital. O rito já era um manifesto.

O teatro popular, sobretudo aquele feito como devoção, também é técnico. Mas é outra técnica: a do corpo-devoto. Um corpo que não precisa recorrer à memória emotiva à la Stanislavski, porque já carrega em si a fé, o rito, a emoção ancestral. Um corpo que sabe — porque vive. Um corpo que reza — porque pulsa. Um corpo que canta — porque crê. Ali, cada fiel é também ator. Cada lágrima, uma partitura de fé. Cada gesto, uma oferenda estética. Cada silêncio, uma prece em forma de presença.

Por isso, arrisco-me agora — como artista e também como espectador da cena — a descrever o que a Paixão de Cristo dos Capuchinhos representa para mim e para tantos outros corpos que, ano após ano, se colocam em cena com entrega e fé. São 21 anos ininterruptos de espetáculo — e mesmo no auge da pandemia, quando as igrejas estavam fechadas, houve Paixão. Houve lives. Houve encenação. Houve resistência.

Porque o teatro da Paixão não depende de grandes teatros. Ele acontece na rua, na escadaria, no adro da igreja, no olhar de uma Maria que chora, na cruz de um Cristo que cai. Ele acontece onde houver fé disposta a ser representada, onde houver um corpo disposto a amar com a inteireza da entrega. Esse é o teatro que me formou. Não apenas como artista, mas como ser humano.

E é por isso que, depois de vinte anos, me sento, com humildade e emoção, para escrever, abaixo, sobre ele:

***

A direção do espetáculo da Paixão de Cristo nos rememora, a cada ano, que o nosso maior intuito é evangelizar por meio da arte. Não evangelizar no tom impositivo, doutrinador ou catequético — mas na delicadeza de um gesto cênico, na lágrima que escorre no silêncio, na luz que ilumina um rosto em oração. É evangelização pelo sensível. Pelo corpo que crê. Pelo canto que resiste. Pela arte que pulsa.

E é impressionante como o Grupo Renascer — este corpo coletivo que há mais de duas décadas encarna a fé — consegue reunir, a cada Semana Santa, mais de 70 pessoas em cena. São corpos plurais: crianças, jovens, adultos, idosos. Gente que veio da dança, da catequese, do coral, da labuta diária, do banco da igreja e das labaredas da fé. Lá, não há distinção de credo, orientação ou raça — somos um só corpo devoto, movido por uma fé cênica. Uma fé que não se curva ao espetáculo vazio, mas que se ajoelha com reverência diante da beleza do rito.

Sem nenhum fomento público, fazemos o que o povo do teatro popular sempre soube fazer: criar com as próprias mãos. Vendemos iguarias aos domingos em frente à igreja, organizamos rifas, bingos, passamos rifas nos sinais, preparamos maniçobas com gosto e fé. Cada detalhe é costurado com sacrifício, suor e gratidão. Tudo para que o espetáculo aconteça como deve ser: grandioso, digno, potente. Com iluminação cênica, microfones de lapela, figurinos bem-acabados, cenário bem montado — mas, sobretudo, com corpos disponíveis e corações em chamas.

O texto da encenação se ancora nos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João — mas vai além das Escrituras. Ele dialoga com a vida. Com o agora. Com os gritos da Terra. Em 2025, por exemplo, o tema do espetáculo é: "Ame a Mãe Natureza como a ti mesmo". Não se trata de um enfeite temático. É um clamor. Um chamado à conversão ecológica. Um eco do Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis — esse santo da doçura e da coragem, que chamava o Sol de irmão e a Morte de irmã. Nosso Cristo, este ano, caminha também entre as árvores derrubadas, os rios sangrando, os animais em fuga. A Cruz se ergue sobre a floresta. E nos convida a cuidar do planeta como cuidamos de nossas próprias feridas. Falar de Paixão é também falar da Amazônia em pé.

Muitos dos nossos atuantes nunca fizeram um curso de teatro. Não conhecem as técnicas pelas vias formais. Mas seus corpos sabem. Sabem como quem crê. Como quem se entrega. Como quem, ao vestir a túnica, se reveste também do personagem e da missão. Ali, a emoção transborda — não apenas pelo figurino ou pela música, mas porque há fé encarnada em cada olhar.

Destaco, aqui, a atuação de Everson Rolim, que encarna Jesus Cristo. Ele não tem formação acadêmica em teatro. Mas tem o que nenhuma escola ensina: presença verdadeira. Seu rosto parece emergir dos ícones antigos, seu corpo sabe o peso da cruz, seus olhos comunicam mais do que o texto. Ele não interpreta — ele vive. Na Via-Sacra, percorrida pelas ruas do bairro, Everson carrega o madeiro com tamanha entrega que parece transfigurado. A cada passo, a Paixão revive diante dos nossos olhos. Sua voz embargada clama ao Pai. Suas quedas nos ferem. Sua morte na cruz é de uma beleza dilacerante.

Essa é a técnica do nosso teatro: a técnica emotiva da fé encarnada. Técnica do corpo que crê. Do corpo que se comove. Do corpo que dança como reza, que chora como entrega, que representa como se estivesse diante do altar.

Isso também se revela nas interpretações de Maria, mãe de Jesus, vivida com imensa sensibilidade por Ester e Sueli. Suas atuações não gritam. Não exageram. Elas silenciam. Elas pairam. Elas atravessam. É no gesto contido, no olhar ferido, no choro que não se derrama, que Maria aparece. Ali está a mulher que sofre por seu filho, mas que sustenta o mundo com a força de seu amor. É um lirismo profundo, encarnado, visceral.

E HÁ OS ANJOS pequenos profetas da esperança, crianças que flutuam com suas asas de tecido e olhos brilhantes, anunciando com suavidade aquilo que os adultos já esqueceram: que o céu começa quando se acredita.

HÁ OS SOLDADOS ROMANOS - austeros, imponentes, simbólicos, com seus passos duros e semblantes fechados, carregando séculos de poder e obediência cega, reencenando a brutalidade que ainda hoje fere corpos inocentes.

AS MULHERES PIEDOSAS CHORAM - e o choro delas não é só por Jesus, mas por cada filho desaparecido, por cada corpo negro violentado, por cada mulher esquecida, invisibilizada, agredida. Elas choram como mães que ainda não enterraram seus mortos.

HÁ JUDAS - que trai com um beijo. Um beijo que sangra. Um beijo que ecoa nos becos da consciência e que depois, sozinho, tenta carregar um peso maior do que a própria vida. Afoga-se — não em um rio, mas em sua culpa.

PILATOS APARECE- lavando as mãos como quem apaga rastros. Mas a água não limpa o que a covardia fixa. Ele simboliza tantos que, diante do abismo, preferem a neutralidade confortável ao posicionamento ético. A omissão também mata.

OS SACERDOTES TRAMAM - com vestes longas, corações pequenos. Eles representam aqueles que, ainda hoje, usam o nome da fé para alimentar o poder, os que pregam com os lábios, mas negam com os atos. Homens de altar que esquecem o sagrado.

HERODES DANÇA- ri, zomba, veste-se de ouro e debocha da fé do povo. É a caricatura da vaidade vazia, do sarcasmo institucionalizado, dos que transformam o sagrado em espetáculo superficial, dos que preferem o aplauso à conversão.

E HÁ MARIA MADALENA - julgada, apontada, quase apedrejada. Ela carrega nos ombros os pecados que nunca cometeu. Mas encontra no olhar do Cristo um recomeço. No perdão, ela renasce. No acolhimento, ela resiste. Ela é todas as mulheres que, feridas, encontraram na fé o seu lugar de volta.

E HÁ OS APÓSTOLOSaqueles que caminham ao lado do Cristo, com seus gestos inseguros e olhos ora fiéis, ora temerosos. Homens comuns, chamados a algo incomum. Eles representam a nossa contradição: querem crer, mas duvidam; querem ficar, mas dormem; juram fidelidade, mas negam três vezes antes que o galo cante. Ainda assim, são chamados "amigos".

E HÁ PEDRO - com sua espada que corta e sua boca que nega. Pedro, o instável. Pedro, o humano. Pedro, o que cai e levanta. Ele nos representa na fé trêmula que, mesmo vacilante, é escolhida para edificar.

HÁ JOÃO - o discípulo amado, aquele que se debruça no peito do Cristo, aquele que permanece ao pé da cruz, aquele que vê Maria e a recebe como mãe. João é a ternura que fica quando tudo parece ruir.

E HÁ OS DEMÔNIOSnem sempre com tridentes, com chifres, mas com bocas que sussurram o medo, com olhos que instigam a dúvida, com risos que zombam da fé alheia. Eles se movem entre sombras e se alimentam da vaidade, da inveja, da mentira. São os que atormentam Judas em sua culpa, os que sussurram a Pilatos que o poder vale mais que a justiça, os que rondam Herodes para que ele siga rindo do sagrado. Eles dançam, eles sibilam, eles giram em cena como ventos densos — mas são sempre vencidos pela luz.

HÁ AS DANÇARINAScorpos que não apenas dançam, mas traduzem em movimento o que a fala não alcança. Elas ondulam como águas do Jordão, pisam o chão como quem consagra a terra e com seus véus, com seus giros, com seus silêncios, revelam aquilo que só a dança pode anunciar: ofertas preciosas depositadas aos pés da cena.

E HÁ OS SACERDOTES com seus mantos longos e olhos frios, representantes da lei que já esqueceu o amor. Eles tramam, questionam, acusam, conspiram. Com a Torá nas mãos e a dureza no peito, eles se colocam como juízes do Cristo, mas não percebem que, ao condená-lo, condenam também a esperança. Estes sacerdotes são figuras do poder que teme o novo, do dogma que reprime, da religião que se afasta da compaixão. Mas mesmo neles — mesmo nos que acusam — há um chamado à conversão.

Porque o teatro da Paixão não escolhe lados fixos. Ele denuncia, mas também redime. Ele revela o erro, mas oferece recomeço. E talvez por isso ele seja tão poderoso. Porque cada personagem é espelho. Cada papel é um convite à introspecção. E por trás de tudo isso —das luzes que acendem, do som que ecoa, do pano que desce no momento exato, do figurino que aparece limpo, da coroa de espinhos que está no lugar certo...

ESTÃO OS TÉCNICOS- Sim, os que estão nos bastidores: homens e mulheres invisíveis à plateia, mas visivelmente essenciais. Eles são os que costuram a cena antes do público chegar. São os que apertam os parafusos da cruz, os que seguram a cordinha da luz, os que limpam o chão, montam as caixas de som, corrigem o microfone que falha. Eles são os que fazem com que tudo pareça mágica, mas que vivem no terreno da prática.

Eles também oram — com as mãos. Eles também creem — no silêncio. Eles também atuam — com as ferramentas. Eles são a liturgia oculta do teatro. E sem eles, nada se revela.

E HÁ A DIREÇÃO ARTÍSTICA coração pulsante que costura o todo, voz que ecoa nos bastidores, olhar que antecipa o que o público ainda não viu. A direção é como um sopro divino que organiza o caos, que conecta as partes, que dá ritmo à fé, que transforma ensaio em espetáculo, improviso em rito, cansaço em glória.

É ela quem escolhe o tom das luzes, a trilha que dilacera, a hora certa do silêncio. É ela quem acorda mais cedo, quem dorme depois de todos, quem assiste à cena mesmo de olhos fechados, porque já a ensaiou mil vezes no pensamento.

E essa direção, nas mãos de Suelen Miguele, não é apenas técnica. É dom, é ministério. É entrega absoluta à arte como forma de fé. Suelen não apenas dirige — ela ora pela cena. Ela não apenas dá comandos — ela forma pessoas. Sua direção é como uma vela acesa no escuro do palco:

Ela mostra o caminho, aquece, conduz. E como toda boa diretora, sabe que o seu lugar não é o centro do palco, mas o espaço sagrado entre o invisível e o possível. É ali que ela opera milagres — em silêncio, com firmeza, com beleza. É por isso que, ao fim de cada espetáculo, quando o público aplaude, há algo maior sendo aplaudido: a coragem de uma mulher que há mais de vinte anos transforma corpos em evangelhos vivos.

O espetáculo culmina na Ressurreição, quando o pano branco sobe, quando o Cristo aparece em luz e glória, quando o som ecoa pelas paredes da igreja, nós lembramos: A MORTE NÃO TEM A ÚLTIMA PALAVRA. Há sempre uma aurora. Um renascimento. Um terceiro dia em que tudo se transforma.

Esse espetáculo — com todas as suas nuances, alegorias, símbolos e lágrimas — dura, em média, duas horas e meia. Mas o que ele provoca dura muito mais.

É TEATRO POPULAR.

É CULTURA VIVA.

É MEMÓRIA ENCARNADA.

É ESPIRITUALIDADE ESTÉTICA.

É FÉ PERFORMADA.

A Paixão de Cristo é a peça mais encenada do mundo. Mas aqui, em Belém do Pará, ela pulsa de forma singular. Ela não apenas revive tradições — ela revigora corações, forma artistas, fortalece comunidades, reacende esperanças. Por isso, digo com toda convicção, com toda emoção e com toda devoção: o teatro da Paixão dos Capuchinhos não apenas revive — ele ressuscita, sobretudo, em nossos corpos. Sobretudo, em nossos corações. Sobretudo, na fé que seguimos encenando.

16 de abril de 2025.

[1] Artista-professor-pesquisador paraense. Formado pelo Curso Técnico em Teatro (ETDUFPA, 2015) e Licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2018). Mestre em Arte e atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/UFPA).

OBS: Confiorme o autor da crítica, a Ficha Técnica está em fase de atualização/finalização e será enviada para publicação em breve.