Carta ao amigo Teodoro – Por Edson Fernando
Montagem Teatral: Meu Amigo Inglês
Montagem: um.dois.três.cia.de.teatro
Edson Fernando[1]
Prezado Palhaço
Dou-me a liberdade de chamá-lo assim por três motivos: em primeiro lugar, por observar que tu carregas esse nariz vermelho com muito orgulho e altivez; em segundo lugar, pelo meu desejo de estabelecer esta missiva como uma conversa entre palhaços - embora eu tenha escolhido animar festas infantis, não usar nariz e atuar num lugar um pouco diferente dos picadeiros convencionais, também me considero um palhaço -; e por fim, por tu me ensinares que mesmo quando não se usa a "menor máscara do mundo" é necessário transformar as tragédias da vida em comédia - ou, pelo menos, dar umas boas gargalhadas dos próprios infortúnios.
Estabelecida, nesses termos, sinto-me a vontade para iniciar te dizendo do meu imenso prazer em recordar as visitas que fiz ao teu trailer. Embora as pequenas acomodações nos pregassem situações de "teatro pastelão" - com um de nós tropicando e espalhando comida pra todo lado, inclusive na cara, um do outro -, não posso deixar de registrar a satisfação de nossos palavreados, tendo ao fundo as canções de Nelson Gonçalves. Acho que já te confidenciei, certa vez, que essas canções me remetem imediatamente ao meu pai.
Herdei a veia artística, certamente, de papai que adorava interpretar as canções do "rei do rádio" impostando a voz e fazendo "caras e bocas", como se declamasse aquelas dores de amor diretamente pra mamãe. A cena não deixava de ser patética, pois só ocorria depois do papai meter umas "branquinhas na cabeça", ocasião em que o jeito fechado, sisudo e calado de ser cedia espaço para um homem presepeiro e afeito a galhofas - por vezes, acho que meu pai era uma espécie de Sr. Puntila do Jurunas, mas quando lembro que nossa casa ocupava um pedaço de terra bem menor que um campo de futebol, me dou conta que ele está mais para o criado Matti do que para o latifundiário finlandês. Patético ou não, a cena divertia até mamãe que, embora resmungasse pequenos impropérios, se sentia envaidecida por ser a musa inspiradora daquelas interpretações parlapatónicas.
Desculpe por essa pequena divagação, Teodoro, mas acho importante te dizer como as pequenas coisas da vida - como ouvir uma boa canção - conseguem nos fazer repensar sobre os rumos que podemos dar pro nosso futuro. Falo isso, pois sei que ultimamente o teu Amigo Inglês tem te colocado algumas ideias inconvenientes na cabeça. Contudo, como sei também que não tens vocação para ator trágico, deixe de lado esses pensamentos agourentos e vamos nos concentrar no que verdadeiramente interessa: rir da vida. Nisso és mestre!
Por isso gostaria de saber como tem sido as aventuras no teu [pica]deiro? Muitas palhaçadas para adultos, heim camarada!?
Lembras sempre, que tu és um palhaço de muita sorte, pois tem as duas coisas mais importantes da vida: um picadeiro e um grande amor. E que grande amor, heim!?. Tua querida Mada, a palhaça que todo circo gostaria de ter para enfrentar as mais difíceis adversidades com um sorriso largo no rosto.
Perguntaram-me, outro dia, se eu acreditava que o palhaço ficaria órfão se fosse despejado do circo. Eu fiz um ar de homem sério, cocei o cavanhaque como se pensasse na questão com profundidade, pigarreei e, então, soltei uma boa gargalhada. Imediatamente lembrei do teu trailer e de tantas outras experiências que tem provado a versatilidade que, nós palhaços, possuímos. Vejo palhaços contando histórias, palhaços animando festa de aniversário, palhaços nos semáforos, palhaços nos teatros, palhaços recitando trovas, palhaços criando mimos, palhaço malabarista, palhaço na perna-de-pau, tem palhaço dançarino, palhaço cuspindo fogo, palhaço pesquisando o cômico em tribo de índio, palhaço em projeto social e até palhaço especialista em gastronomia. Acho que somos uma espécie de gremlins que se multiplica a cada chuva.
E dentre todos esses, tu és o palhaço que me faz lembrar dos momentos solitários que passei ao término das festas de aniversário que eu animava. Era uma opção minha: comer somente depois de encerrado o trabalho. Então, passava a festa inteira colocando a criançada pra gritar, brincar, correr, subir, puxar, suar, dançar, pular, rolar no chão, enfim, o verbo que orientava meu trabalho como palhaço animador de festa era MOLEQUEAR. As festas ficavam uma gritaria só. Alguns pais se assustavam, achavam um horror, mas a maioria estava mais preocupada em tomar a sua cerveja, sossegados, livres, por algumas horas, da aporrinhação dos filhos. Outros, ainda, até entravam na farra se permitindo voltar a ser criança. Era uma zorra. Mas quando tudo terminava, eu me recolhia pra trocar de roupa, tirar a maquiagem e voltar para me servir, comer, beber. O cenário de alegria e diversão era substituído, então, pelo silêncio e solidão do salão de festa. Os convidados já haviam partido, os balões se espalhavam soltos ou estourados pelo chão, copos e pratos sujos espalhados pelas mesas, cadeiras reviradas, mesas sem toalha, o bolo cortado e as sobremesas quase no fim, garrafas de refrigerantes pela metade ou vazias, a música estava desligada ou num volume bem baixo a ponto de ser possível ouvir o lavar das louças na cozinha... Todo o frenesi anterior cedia espaço para o cansaço, e um silêncio interior profundo me fazia pensar na vida, na linha tênue entre alegria e solidão.
Hoje, vendo como tu desnudas o teu picadeiro e nos mostra como essa linha é muito mais tênue entre o drama e a comédia, entre a saúde e a doença, entre a alegria e a tristeza, entre o amor e a solidão, enfim, entre a tragédia e a comédia, me dou conta do quanto ainda preciso aprender sobre os refinamentos da vida. Ao desnudar o teu picadeiro, tu mostras que dor e riso conseguem conviver lado a lado se retroalimentando. Fico imaginando se a dualidade das coisas não foi um grande chiste que um espírito zombeteiro criou só pra nos confundir a cuca. Ao desnudar o teu picadeiro e fazer pequenas troças com a própria condição de saúde, me mostras que nenhum tema pode ser considerado tabu quando o elemento condutor é a poesia, a vontade de poetizar o mundo, a vontade de transformar a desventura em arte.
Seria essa a finalidade da arte?
Não! A arte não serve pra nada. Querer que a arte sirva pra alguma coisa é submetê-la às rédeas de outras modalidades simbólicas do homem. É como se alguém me perguntasse: "- Por que você é palhaço?". "- Ora bolas" - responderia eu, com um ar blasé, "- Porque é a única coisa que sei fazer!". Isso não quer dizer que as pessoas não possam encontrar uma finalidade, uma utilidade para a arte; colocá-la em função de alguma coisa, usá-la como instrumento de algo - sinto calafrios só de imaginar isso.
Iiihhh, a conversa enveredou por um tom reflexivo demais. Será que existe palhaço filósofo? É melhor deixar as elucubrações de lado, pois acredito ser mais urgente, viver e rir da vida.
Olho pro teu trailer, então, e penso alto: "- O circo pode caber numa mala. Basta que o palhaço possua vontade e coragem de dizer que tudo na vida é muito ridículo pra ser levado a sério." E olha que o mundo tem levado muita coisa ridícula a sério como, por exemplo, ficar se metendo na sexualidade das pessoas. Tem coisa mais ridícula do que se preocupar com o cu alheio? Eu, de minha parte, quero mais é que o circo [de horrores] pegue fogo e que os demagogos se asfixiem com a própria fumaça de suas hipocrisias.
Ihhh. De novo! Disse que não ia refletir e já estou novamente com esses pensamentos chatos demais para uma conversa entre palhaços. Vou mudar de assunto.
Acho que a melhor coisa que vocês fizeram foi carregar esse picadeiro no trailer. Fico imaginando a quantidade de gente que já testemunhou a magia do circo com essa ação simples que leva apenas uma escada, três bancos, um tapete e alguns acessórios e figurinos. A simplicidade seria um segredo do circo ou da vida? Confesso que tu me fazes pensar na linha tênue que separa as leis do circo e as leis da vida. Costumamos dizer: "o espetáculo não pode parar". Isso valeria pra vida, amigo Teodoro?
Iiiiiihhhhhh. Começou a ficar sério de novo. Juro que não vou mais te importunar com esses pensamentos altos [e chatos].
Vamos falar de coisas belas. Vamos falar de Madalena. Vamos falar das esquetes de rua, dos números de circo, do sorriso daqueles que testemunham pela primeira vez, na rua, o jogo cênico do palhaço. Vamos falar dos festivais de rua, da cena de rua dividida com o cachorro, dos bêbados que, na praça, resolvem assumir o protagonismo do palco. Vamos falar dos semáforos que se transformaram em picadeiro, das palhaçadas realizadas em ônibus urbanos, dos palhaços que dançam com o boi nos cortejos de folguedos juninos. Vamos falar do palhaço no batuque da praça, do palhaço que anima e alegra tantas "terras firmes" que se espalham em Belém. Vamos falar do palhaço que continua rindo e fazendo rir a despeito do festival de ópera. Vamos falar do deboche, da sátira, do escárnio, da zombaria, da caçoada, das troças, das bufonarias, das chacotas, das galhofas, dos sarcasmos e ironias ácidas que nós palhaços sabemos muito bem como fazer.
Por tudo isso, meu amigo Teodoro, quando o teu Amigo Inglês vier te importunar, lembras que foi contigo que eu pude refrescar todas essas coisas na cabeça. E, então, te lembras que é preciso falar de "arte porque a vida já não basta".
Ass: Zé Tan Tan
28 de agosto de 2018.
[1] Ator, diretor e professor de teatro. Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO. Palhaço animador de festa de aniversário na primeira década do século XXI.
Ficha Técnica:
Montagem Teatral:
Meu Amigo Inglês
Montagem:
um.dois.três.cia.de.teatro
Elenco:
Mario Zumba e Romana Melo
Texto:
Mario Zumba
Figurinos:
Aníbal Pacha
Iluminação:
Jorge Torres
Produção:
Mario Zumba
Direção:
Marton Maués