Carta O Mundo: a performatividade das máscaras em Catarse – Por Matheus Amorim

12/03/2019

Montagem Teatral: Catarse

Montagem: Companhia Paraense de Potoqueiros

Matheus Amorim[1]

A obra teatral Catarse apresenta-se como a segunda parte de uma trilogia de espetáculos produzida pela Companhia Paraense de Potoqueiros; sua primeira parte, chamada Lúgubre, inicia esta trajetória poética desenvolvida pelo grupo no ano passado. Catarse chega aos palcos de Belém com uma grande expectativa, devido o sucesso de sua empreitada. A Divina Comédia, berço e enredo que territorializa Catarse, é um dos mais belos poemas de viés épico e teológico da literatura italiana e mundial escrito por Dante Alighiere, que num liame deságua em terras tupiniquins como a abertura de um espaço outro, proposta esta vislumbrada por Catarse que carrega em seu significado um estado de libertação psíquica que o ser humano vivencia ao superar traumas como o medo, ou a opressão. Contudo catarse também pode ser compreendida como um estado de purgação espiritual que algum indivíduo almeja através, por exemplo, da confissão. Entender os sentidos disparados pela palavra catarse se faz necessário para assim investir numa possível compreensão e escrita crítica sobre a obra cênica supracitada.

O espetáculo apresentado em um teatro de porte experimental entrega-me de forma potente um bilhete de entrada para viajar numa barca até um lugar de não culpa, a subida de uma montanha talvez, um trajeto mutável até uma redenção que muito se espera, e muito se almeja. Deparo-me com súplicas, socorros que de alguma forma sobressaem a pele dos intérpretes que ali se colocam enquanto palco. "Água, luz e oração" são os pedidos emitidos pelos seres ali presentes, um pedido sufocante. Noto então a linha contínua mantida nos figurinos, trapos, um tom terra ganha minha vista, totalmente cabível e forte, corpos explodindo energia e vitalidade. Há um choro, um lamento que paira sobre o que na minha percepção chamarei de viajantes.

Vale destacar aqui a performatividade do corpo que o espetáculo põe em cena, uma performatividade limite, movimentos contínuos desenvolvidos de forma natural a tornar o toque no expectador, parte integrante da poética desenvolvida, corpos que entram profundamente suas trajetórias até ali. Estando em pé, junto a todos os outros espectadores, imagino que não haverá lugar para sentar-se naquele inferno, engano-me, talvez fosse um pedido vindo de Lúgubre. Meus viajantes querem ser levados, poupados de sua caminhada, porém, neste inferno, todos pagarão por suas dívidas.

Desce o cabide e então através de parábolas sinto um cristo aproximar-se, a ideia de um redentor costura-me os olhos em Catarse, ponto. A ideia da raposa e justiça abre caminho para um leque de possibilidades do que o por vir traria. Contudo, ao ser afetado por uma interpretação pálida, e gélida, sucumbo a não aceitação deste astro, que mantém uma linha tênue e frágil entre si e sua proposta de personagem. O jogo com o pequeno manto verde, que passeia entre todos os personagens e acredito que atores, talvez não seja suficiente para identificar massivamente a trajetória do astro, óbvio que esta percepção se dá a partir daquilo que é exposto, então pode haver uma variação de acordo com quem o interpreta.

Subam o cabide e me apresentem agora a quem aqui chamarei de pássaro. Devo confessar que fui cativado e fincado na verdade que esta personagem gritou, um tipo de guia que brota como uma possível personagem narradora, que numa incessante tentativa costura, à luz de seu candeeiro, as histórias que saltam frente a mim como um turbilhão de vozes, o que de certa forma exercita o desprendimento a um teatro cronológico e linear, ponto. Porém, sinto que a falta de pousar sobre um solo bem regado gera um pequeno embaraço na compreensão total da obra. Não sei se compreender tudo seria o objetivo, mas os pontos soltos em algumas cenas e a falta de verossimilhança me fizeram, em alguns momentos, perder a conexão. Em dadas cenas como a do transplante de órgãos, temática levantada com um tom de teledramaturgia, onde pareceu-me que o embaraço com o texto despertou uma insegurança na contracena, o fez da insistência do personagem um improviso exacerbado.

Outro destaque dá-se a disponibilidade encantadora do palco central, já que o espetáculo conta com vários sub palcos onde acontecem o entrelaçamento existente na obra. Há uma montanha feita de ferro e madeira em pura desordem, o que traz para a visualidade do espetáculo, uma estética que bebe no absurdo e precariedade. Começa então um jogo de cenas muito bem desenhadas, histórias sendo contadas a luz de pino, muito bem abertas na boca de cena, um tique taque adianta o passar do tempo e desenha as vidas afetadas pelo interesse, pela ganância, inveja e poder. Uma pequena costura desenvolve-se e ganha força, o pássaro chama, e por uma fração de tempo penso estar assistindo a um teatro grego de bons costumes. Deste ponto em diante, sinto fraquejar a força que outrora o texto havia exposto.

Por conseguinte, é importante não deixar passar as críticas mais específicas despertadas por Catarse, como, por exemplo, o massacre de protocolos enfrentados pelos grupos independentes de teatro para com as pautas e editais oferecidas pelas saqueadoras fundações culturais, ponto, o que de modo algum acoplou ao transe um teor panfletário.

Chego talvez, na percepção destaque deste espetáculo, o trabalho desenvolvido com e a partir das máscaras. O jogo bem executado com as cenas de teor mais naturalista e suas migrações para os corpos animalescos expostos pelos intérpretes, a minuciosidade nas escolhas dos animais e suas relações com as histórias e de como essa relação joga-nos frente a um animalesco moral, onde enfrenta-se a real purgação dos surtos sociais e civis, e de toda a ideia entre o profano e o sagrado que desperta essa conexão. Este gatilho reativa no espetáculo a performatividade agora a partir de um figurino/acessório muito bem pensado para expor o não distanciamento entre a prisão e o pecado.

Em últimas palavras, sinto que o espetáculo poderia ter prosseguido e mostrado as frestas da redenção, contudo, cumpre de forma cativante sua segunda parte da trilogia, trazendo como carro chefe uma poética a partir do texto que se torna um espaço de reflexão que está para além da cena. No mais, se faz necessário rever Catarse, não pela ideia de colocar algo para fora de si, mas na perspectiva de aguçar as compreensões intrínsecas na obra, nos detalhes que a qualquer momento parecem despertar uma enxurrada de outras analogias e alegorias, como, por exemplo, na cena em que o astro está subindo a montanha e encontra com outros dois homens que disputam por sua atenção e ajuda. No dado momento em que presenciei esta cena, senti sua essência cravada na história do homem de Nazaré e os dois ladrões na cruz do calvário.

Catarse é uma obra que me parece ser pensada a partir do ideal aristotélico, na busca de que o teatro seja uma ferramenta de libertação do ser humano, na ideia de purificação a partir do contato com uma paixão, ou um auto sacramental, o que era muito comum acontecer durante a idade média. Apesar de sentir este tom em Catarse, sinto que ela ultrapassa nossa contemporaneidade e arde como um facho de luz na noite escura, uma luz em meio a tantas iguarias de mesmo sabor, um vislumbre sobre novas formas de dialogar com a moral, a ética e com desconstrução de costumes sociais construídos a partir de ideais patriarcais e religiosos. Catarse é um grito epifânico na alma e no corpo!

12 de Março de 2019.


[1] Ator e Graduando em Licenciatura em Teatro.

FICHA TÉCNICA

Elenco:

Alex Vilar, Fernando Sarmento, Giscele Damasceno,

Leoci Medeiros, Leonardo Sousa, Luana Oliveira,

Nilton Cézar, Renan Coelho e Renan Delmontt.

Direção:

Breno Monteiro

Produção e Assessoria de Imprensa:

Lauro Sousa

Visualidade e Dramaturgia:

Breno Monteiro e Lauro Sousa

Contrarregras:

Eliane Gomes e Jadylson de Araújo

Iluminação:

Breno Monteiro

Sonoplastia:

Lauro Sousa

Operação de Sonoplastia:

Lennon Bendelak

Preparação Corporal:

Leoci Medeiros

Maquiagem:

Nilton Cézar

Máscaras:

Stephanie Lins

Ilustração:

Diogo Lira

Arte:

Leonardo Sousa

Fotos:

Renan Coelho

Apoio:

Espaço das Artes de Belém e LB Assessoria e Cerimonial