Elas e Ele na Valsa – Por Edson Fernando

19/10/2024

I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica.

Montagem teatral: "A Monstruosa Face da Morte"

Edson Fernando[1]

Preciso iniciar confessando duas coisas importantes: Em primeiro lugar, minha expectativa antes de assistir a montagem em questão, era a de produzir um texto ensaístico para dar vazão – por meio do passeio criativo das palavras – as percepções provocadas a partir da experiência teatral; e isso não é nenhuma novidade para quem acompanha a trajetória do Tribuna do Cretino, afinal, pensar a crítica teatral remoldurada para além e/ou subvertendo o que se convencional estabelecer no imaginário do senso comum como "função da crítica" – isto é, análise rigorosa dos valores técnicos da obra – é algo que vem sendo testado e produzido pelo menos desde 2018, quando o projeto tinha apenas cinco anos de atividades. É claro que a crítica ensaística também pode operar análises técnicas rigorosas; então, não quero criar a falsa dicotomia entre essas duas modalidades de escrita, mas antes apontar para a ênfase que coloco quando escolho a modalidade ensaística: concentrar meu olhar para as sensações sinestésicas geradas a partir da montagem para, então, criar e associar livremente metáforas que me permitam refletir sobre temas direta ou indiretamente colocados pela obra. Acredito que é um modo criativo de dialogar com a obra e escapar dos jargões "Gostei", "Não Gostei", "Aprovo", "Desaprovo", "Cinco Estrelas", "Nenhuma Estrela" etc.

Minha expectativa inicial, portanto, era de produzir uma crítica ensaística sem me concentrar no mérito técnico da montagem. No entanto, essa expectativa foi totalmente subvertida quando me deparei justamente com um trabalho técnico muito consistente da dupla principal de artistas que convidou Nelson Rodrigues para dançar valsa: Bianca Brabo e Luana Mayara. Nenhum demérito ao trabalho realizado pelos demais membros da equipe técnica, mas concentrarei minha reflexão no trabalho dessas duas, por considerá-las o centro gravitacional da encenação de "A monstruosa face da morte". Esse é o primeiro motivo que me leva a uma análise mais técnica da montagem. O segundo, e talvez, o mais importante, seja trazer para o debate a conjuntura em que a montagem está inserida, isto é, a oportunidade de pensar o resultado da conclusão de curso dos seis estudantes do Tecnológico de Produção Cênica/UFPA – curso que iniciou sua atividade em 2020 em meio a pandemia de Covid-19 –, mas também os rumos pedagógicos desse curso em perspectiva com os demais ofertados pela ETDUFPA. Dito tudo isso, vamos as minhas considerações.

"A monstruosa face da morte" é o primeiríssimo trabalho que abre a I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica. A montagem, dirigida por Luana Mayara, é inspirada em "Valsa Nº 6", único monólogo da obra de Nelson Rodrigues. Quase esqueço de confessar a segunda coisa importante que mencionei logo no início: sou completamente apaixonado pela obra de Nelson Rodrigues – os romances, as crônicas e, é claro, as peças de teatro. E isso de algum modo mexe com as minhas expectativas. Neste caso, a montagem mexeu comigo a tal ponto que arrisco dizer ser uma das melhores coisas de Nelson Rodrigues que já vi montado no teatro.

Por se tratar dos primeiros concluintes do curso de Produção Cênica não sei como pedagogicamente se opera a escolha da montagem, a escolha do elenco e nem da equipe técnica; quanto tempo para ensaios e pesquisa, sala de ensaio, material para encenação etc. Apesar de já ter ministrado aulas no curso, desconheço como se dá a escrita do TCC e quais as modalidade de trabalho de conclusão previstas em seu PPC – infelizmente, minha passagem pela gestão administrativa, nos dois últimos anos, me afastou das atividades de sala de aula de todos os cursos, mas espero voltar a atuar em Produção Cênica. Todas essas questões, e certamente outras que me escapam, são de extrema relevância para os rumos que o curso inaugura a partir dessa pequena turma de concluintes. As considerações que apresento a partir de agora, portanto, não se estabelecem em certezas, mas, antes, em especulações artístico-pedagógicas.

A primeira coisa a destacar é exatamente a escolha por um monólogo. Operacionalmente me parece um escolha muito sagaz e que se revelará absolutamente assertiva para a estruturação da encenação proposta, pois concentra toda atenção no trabalho com apenas uma atuante. E aqui cabe um parêntese para uma comparação oportuna, embora perigosa.

Em 2012 – se não me falha a memória – dirigi a prática de montagem dos cursos técnicos da ETDUFPA ao lado do parceiro do GITA, Cesário Augusto Pimentel. Na ocasião montamos "À distância de Macbeth", uma livre adaptação da tragédia shakespeareana "Macbeth". Acredito ser de conhecimento público que as práticas de montagens da ETDUFPA envolvem os cursos técnicos em Teatro, Figurino e Cenografia. Então, sob a responsabilidade dos diretores estão, aproximadamente, os vinte alunos do técnico em Teatro, mais os cinco alunos do técnico em Figurino, mais o cinco alunos do técnico em Cenografia. São certa de 30 alunos, em média, para trabalhar administrando egos e expectativas de alunos de cursos diferentes e ainda gerenciar os limitados recursos financeiros disponíveis. Diante dessa configuração não é de estranhar que o trabalho individual de direção de ator ceda espaço para a criação de uma encenação mais robusta para, assim, oportunizar a todos os envolvidos espaço para o exercício de seus ofícios – seja na atuação, na cenografia ou no figurino. O que estou chamando por "direção de ator" é o conjunto de ações voltadas para o adensamento da atuação: trabalho minucioso com o texto observando suas múltiplas camadas de significantes; trabalho minucioso com as entonações e intensidades da oralização do texto (pausa, semipausa, pausa longa, pausa grave, ênfase dramática etc.); desenho das marcações e distribuições espaciais na área de atuação; desenho das partituras de atuação (gestualidade, expressividade, idiossincrasias, excentricidades etc.). Todos esses elementos articulados com a visualidade da cena além do ritmo e andamento da montagem como um todo.

Por tudo isso, a escolha de um monólogo se fez muito assertiva, pois concentrou todo o trabalho na atuação. Considero que a encenação proposta por Luana, portanto, concentra toda, ou grande parte, de sua atenção no trabalho de "direção de ator" com Bianca Brabo. É aqui que encontro toda a vitalidade e potência rodrigueana em cena. Vejamos como observo essa elaboração.

A relação palco-plateia, proposta por Luana, organiza e nos oferece uma arena retangular com um piano e uma banqueta, de um lado, e do outro um véu branco no chão. Fora isso, toda a área de atuação está nua, cercada pela plateia por todos os lados; é o salão de dança, local onde Bianca valseia desde os primeiros até os últimos suspiros de Sônia. Mas não esqueçamos que se trata de uma valsa rodrigueana e, portanto, se empreende, desde o início, um ritmo alucinante, sem pausas, sem tempo para contemplação, uma avalanche de situações desencontradas que soltam a toda hora e por todo o espaço da área de atuação. Como o diria o próprio Nelson: "O teatro é mesmo dilacerante, um abscesso. O teatro não tem que ser bombom com licor" (RODRIGUES, 1981, p. 21).

Considero que a encenação, portanto, se assenta no trabalho de "direção de ator" conduzido por Luana e executado com precisão por Bianca. Não consigo precisar, exatamente, onde começa o trabalho de uma (diretora) e onde começa o trabalho da outra (atuante); quem precipita o trabalho de quem? Se, por um lado, é a "direção de ator" de Luana quem desenha todos os contornos e entonações com o texto, indica as partituras de atuação, conduz e mapeia os volteios, estabelece o ritmo e o andamento da valsa, por outro, é Bianca quem executa tudo com maestria e um domínio de palco que me impressiona e hipnotiza. Mas, se é Bianca quem precipitou todo esse jogo durante o processo de criação e montagem com sua atuação segura e vigorosa, é Luana quem soube aproveitar toda essa potência criadora e empregá-la a serviço da assinatura de sua encenação. Na verdade, pouco importa saber qual das duas dispara o movimento inicial, pois o resultado em cena é de uma valsa vigorosa entre as duas artistas e Nelson.

"Coloquei uma morta em cena porque não vejo obrigação para que uma personagem seja viva. Para o efeito dramático, essa premissa não quer dizer nada." Justificou Nelson, na época da estreia da peça, em 1951. Eu diria que Luana escolheu Bianca pra fazer uma morta, porque encontrou nela a incandescente necessária para retratar o efeito dramático de uma morta que a genialidade de Nelson conseguiu produzir.

Acredito que a I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica tem muito a contribuir com o teatro produzido nos cursos da ETDUFPA, pois ela me parece acenar para um novo modo de pensar e organizar a produção artística-didática-pedagógica para as artes cênicas. Considero que as reflexões que essa mostra podem nos proporcionar estão apenas começando e espero que as outras cinco montagens, que estão por vir nos próximos dias, corroborem para avançarmos juntos na problematização do nosso ofício de "artista-professor" e/ou "professor-artista". Cabe a nós, artistas, professores, estudantes e pedagogos estarmos dispostos e desarmados de nossos egos inflados para enfrentarmos os desafios do arteirar-ensinar-aprender.

Ahhhhh... quase esqueci de dizer sobre o nome da montagem. Não gosto – olha eu me traindo sobre não cair em juízo de valor, rsrsrs. Acho cafona e sem brilho, o oposto de tudo aquilo colocado em cena, isto é, a extraordinária beleza que se extrai diante da morte.

Evoé

19 de outubro de 2024

Referência:

RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo: peças psicológicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

[1] Ator e diretor teatral; coordenador do projeto Tribuna do Cretino;

Ficha Técnica:

Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica.

Elenco:

Bianca Brabo

Sonoplastia:

Ádria Catarina

Assistente de Sonoplastia:

Mac Silva

Iluminação:

Beatriz Melo

Cenografia:

Luana Mayara e Paulo Santana

Figurino:

Bianca Brabo de Leão

Fotografia:

Felipe Thuan

Design Gráfico:

Vitor Martins

Assistentes de Produção:

Fabrício Malcher e Jam Sancas

Social Mídia:

Luana Mayara

Direção:

Luana Mayara