Entre cactos e cordéis: a força de uma farsa popular – Por Raphael Andrade

05/04/2025

Montagem teatral: "A Farsa da Boa Preguiça"

Montagem: Prática de Montagem dos Curso Técnicos de Teatro, Cenografia e Figurino.

Raphael Andrade[1]

De antemão, revelo: quase não fui assistir à presente peça. Fui somente no último dia e na última sessão, às 20h, enfrentando condições climáticas adversas e um quadro de saúde pessoal desfavorável — em plena onda de viroses em Belém. Contudo, soube pelas redes sociais da mudança de local: o espetáculo, antes programado para o estacionamento da ETDUFPA, foi transferido para o Teatro Cláudio Barradas. Essa troca, além de ter poupado minha gripe de se agravar e, concomitante, o meu humor – contribuiu para uma atmosfera mais acolhedora e propícia à fruição do espetáculo. Antes de me aprofundar no conteúdo da encenação, preciso destacar que este retorno como espectador do teatro da minha terra, após um longo afastamento, foi também um reencontro emocional. O ambiente físico e afetivo do Teatro Experimental Cláudio Barradas permeará esta crítica.

Faz tempo que não escrevo para o "Tribuna do Cretino". Parece até que desaprendi a começar uma crítica — mesmo após ter participado de tantas oficinas do projeto homônimo, coordenado pelo professor Edson Fernando. Já escrevi sobre mais de vinte montagens, publiquei um livro de críticas teatrais ressignificadas, e, ainda assim, a sensação de recomeço é inevitável. Cada espetáculo é único. Cada escrita, também. Acreditem, dá um trabalho escrever sobre as produções de outras pessoas, mormente, as que nós temos laços afetivos. Porém, fui impulsionado a escrever após ler outras análises críticas, especialmente a de Cláudia Floresta, intitulada "O teatro e a revolução"[2]. Fiquei refletindo sobre como a crítica teatral é sempre subjetiva, e como cada noite, cada público, cada olhar, transforma a obra em algo novo.

Pensando nisso, decidi começar o relato sobre a apresentação pelo começo — o momento em que adentrei o Teatro Cláudio Barradas e vi a casa completamente lotada, tive uma emoção imediata. Ver aquele espaço cheio é um bálsamo para quem ama a cena teatral. A produção, além de reunir alunas e alunos de teatro, envolveu estudantes de cursos técnicos como figurino cênico e cenografia. Essa colaboração interdisciplinar enriquece o processo criativo e amplia a dimensão do espetáculo. A direção cênica de Karine Jansen e Larissa Latif conduziu esse complexo encontro de forças com inventividade e firmeza.

A escolha da farsa como gênero foi acertada: permite uma crítica à preguiça — e, por extensão, a tantos hábitos e vícios sociais — com leveza e humor. A atuação dos alunos do primeiro ano trouxe frescor, espontaneidade e verdade. Há, claro, limitações naturais de formação, mas elas foram compensadas pela entrega e pela vibração em cena.

A visualidade inspirada na arte armorial foi, para mim, um dos pontos altos. A coordenação de Iara Souza respeitou e reinventou a estética proposta por Ariano Suassuna, que via na arte uma forma de resistir culturalmente e valorizar as raízes nordestinas. Literatura de cordel, música, teatro, xilogravura e religiosidade popular convivem nesse universo que busca conciliar o erudito e o popular e a peça mergulha nesse espírito.

A cenografia e o figurino — impecáveis — conseguiram representar o sertão com profundidade simbólica. Embora estejamos imersos em debates sobre sustentabilidade, nem sempre é possível trabalhar apenas com materiais reciclados. Dar aos alunos a chance de criar do zero também é pedagógico. Como egresso da ETDUFPA (formado há 10 anos), sei que muitos figurinos são encontrados em brechós, o que também movimenta o empreendedorismo local (E ISSO TAMBÉM É IMPORTANTE!).

Infelizmente, a falta de recursos é uma constante na Escola de Teatro e Dança da UFPA. É essencial que o poder público compreenda o valor dessa instituição e a apoie de forma contínua. Ainda assim, mesmo diante das adversidades, a cenografia de "A Farsa da Boa Preguiça" foi elaborada, simbólica, e inteiramente coerente com a proposta armorial[3].

Na crítica de Cláudia Floresta, ela questiona a relação entre o inferno e o cacto. Aqui, quero fazer uma defesa: o cacto é símbolo de resistência, adaptação e sobrevivência. Usar o sertão como metáfora do inferno — ao invés do tradicional fogo "dantesco" — é uma jogada sutil e ousada. O inferno aqui não é ardente, é seco, é áspero, é silencioso. Uma crítica potente. O cenário, com sol intenso e nuvens poéticas, remete ao universo do cordel, e nos transporta para um plano entre o real e o mitológico.

O figurino, coordenado por Ézia Neves, seguiu uma linha burlesca, utilizando esponjas para alterar a forma dos corpos dos atores. Isso criou uma estética potente e crítica. As referências às xilogravuras (ou "iluminuras", como preferia Suassuna) acrescentaram textura à cena. Se eu fosse fazer uma sugestão: incluiria a tipografia armorial — inspirada nos ferros de marcar gado — no cartaz. A chamada "heráldica sertaneja" traria uma conexão visual ainda mais direta com o universo de Suassuna.

A maquiagem dos atuantes foi outro ponto favorável na composição da visualidade. Os traços marcados e expressivos me remeteram imediatamente a marionetes, o que conferiu um ar lúdico e ao mesmo tempo crítico à encenação. Essa escolha não apenas dialoga com a estética da farsa, como também colabora para criar uma linguagem corporal amplificada, coerente com o tom do espetáculo. Se Grotowski valorizava um "teatro pobre", eu, pessoalmente, prefiro seguir a filosofia de Joãozinho Trinta — um verdadeiro "encantador de alegorias": "quem gosta de pobreza é intelectual, o povo gosta é de luxo".

E, nesse sentido, o espetáculo acerta ao escolher uma visualidade carregada de símbolos, cor e exagero nas ações. É nesse excesso controlado que reside parte de sua força estética e política. E seguindo essa perspectiva, as atuações me impressionaram. Interpretar Suassuna não é fácil. A simplicidade aparente de seus textos esconde um oceano de nuances. A comédia, então, exige ainda mais: tempo, ritmo, precisão. Os alunos, mesmo em formação, sustentaram a peça com garra.

A dramaturgia de Suassuna fala de um Brasil profundo, que vai além do Nordeste. Ela trata da alma do povo brasileiro, das lutas de classe, da religiosidade e da cultura popular sem ser panfletária. A crítica de Cláudia ao referenciar que seria mais acertado valorizar apenas o Norte (Amazônia Legal) e não outros prismas, como o Nordeste, é reducionista. Ambos enfrentam marginalização — e ambos têm muito a ensinar.

Destaco ainda a apropriação cultural feita com inteligência e humor: músicas paraenses, referências a Paysandu e Remo, memes da internet. A peça dialoga com o tempo presente e com a identidade local. Essa mistura de referências amplia o alcance da obra e a torna mais potente. Tudo isso fez com que as quase duas horas de duração, o time do espetáculo se mantivesse vigoroso. A sonoplastia ajudou no tempo cômico, ainda que em alguns momentos não tenha conseguido sustentar a cena por completo. As figuras celestiais — Jesus, São Pedro, São Miguel — foram ressignificadas de forma crítica e bem-humorada. Uma releitura do paraíso "à moda suassuniana".

Claro, houve pequenos tropeços — e toda peça, mesmo ensaiada por vinte anos, é passível de erros. Estamos falando de estudantes (e vale lembrar: atuantes com muitos anos de tablado também desacertam). E manter a atenção de uma plateia por duas horas já é, por si só, um feito notável.

Em suma, "A Farsa da Boa Preguiça" é mais do que um espetáculo. É uma provocação jocosa a uma sociedade materialista que enxerga apenas o lado aparente das coisas, presa a uma vontade obstinada de ascensão social e consumo. É também uma celebração: da cultura popular, da educação pública, da juventude criadora e da potência do teatro como resistência e reinvenção.

Evoé!

05 de abril de 2025


[1] Artista-professor-pesquisador paraense, doutorando pelo Programa de pós-graduação em Artes (PPGArtes - UFPA)

[2] Disponível em: https://www.tribunadocretino.com.br/l/o-teatro-e-a-revolucao-por-claudia-floresta/

[3] Suassuna se inspirou nas técnicas medievais de decorar textos religiosos, unindo texto e imagem de forma a criar uma narrativa visual.

Ficha Técnica

"A Farsa da Boa Preguiça"

Elenco:

Adria Leticia

Albert Aguiar

Breno Ushôa

Evelyn Sarmento

João Paulo Ramos

Larissa Couto

Marlene Oliveira

Nazaré Figueiredo

Rafél Silva

Roberta Lima

Direção do espetáculo:

Karine Jansen

Larissa Latif

Direção de cenografia:

Iara Souza

Direção de Figurino:

Ezia Neves

Cenografia:

David Galvão

João Caique

Milene Batista

Assistente de Cenografia:

Mateus Barata

Regis Cardoso

Figurinista:

Enzo Gabriel

Exodo Gabriel

Rosario Oliveira

Uarlason Lima

Design e edição e roteiro de vídeo:

Adrinny Oliveira

Ilustrações e edição de vídeo:

Gustavo Sanato

Fotografia e filmagem cênica:

Danielle Cascaes

Fotografia e mobile:

Camila Martins

Elaboração de texto e edição de vídeo:

Evelyn Sarmento

Elaboração de texto:

Alberto Aguiar

Amarildo Pastana

Sonoplastia:

Gutto Ferreira

Lennon Bendelak