FOTOSSÍNTESE – Por Karimme Silva
Montagem: Isso Não é Um Poema
Solo Cênico de Enoque
Paulino
OBS: A ação do tempo faz com que estados - e palavras - se desenvolvam. O tempo do germinar é um tanto distante do tempo da colheita. Este texto é o primeiro que se distancia da sua montagem, porém amarrou as pontas soltas e aguardou o tempo do plantio. Entre plantar cada semente e contemplar as plantas, existe o tempo.
Karimme Silva[1]
afagar a terra
conhecer os desejos da terra
cio da terra, a propícia estação
e fecundar o chão
(Milton Nascimento e Chico Buarque)
"Isso não é um poema", afirma o atuante Enoque Paulino em seu solo cênico. O artista-pesquisador propõe uma antítese que se desvela entre o título de seu trabalho e a cena. Ele busca, por meio das memórias familiares, resquícios de uma narrativa que se sustenta pela ação e pela lembrança. No início do processo, os indutores eram luminosos; justamente as luzes, instâncias que são mais abstratas e menos controláveis, dependendo da situação. Ao reorganizar para si e para seu corpo essa narrativa, Enoque apresenta o verbo cultivar.
Como desenvolver a fusão entre terra e água para um cultivo cênico? Esteticamente, é possível perceber que a encenação se unifica no elemento terra - a iluminação, a cenografia, a vestimenta, o espaço onde tudo acontece: são tons terrosos e cheios de plantas. É uma casa. Algumas plantas dentro de casa sentem falta da luz; outras, sobrevivem com pouca iluminação. E o que acontece quando a planta é a pele? Assim como as células da pele, as plantas perdem e renovam suas folhas. Enoque parece buscar a ideia da reconstrução, da poda, de conversar com seu público retirando galhos de sua própria história; a relação com o pai de mesmo nome, com a avó Iracema - nome de mulher forte... Tudo isto não é apenas recontado, como revivido. Em um momento ainda recente para os fazedores de Teatro em sua forma presencial, os caminhos têm sido inúmeros. Enoque transpõe a ideia brechtiana da quarta parede para o jogo com uma segunda tela: a transmissão do ato por meios virtuais realizada pela tela de um computador/celular intercala-se com o próprio celular utilizado em cena. O espaço da micro tela, não apenas de onde se lê uma carta para os amigos, mas de onde o atuante joga com o público alternando câmeras. Tudo isso se deve a um trabalho hábil de produção, onde não ficam brechas entre os espaços das cenas/telas. As cenas se desenrolam de forma coesa, onde o atuante aproveita seu estado da/na luz. Exatamente quando as plantas precisam se desenvolver: quando incide a luz, direta ou indiretamente.
O ato de cultivar envolve feitura, envolve atenção ao tempo/clima, ao espaço no qual a planta será colocada. Enoque traz a feitura para a cena, seja falando sobre as espadas de São Jorge, seja vestindo a roupa feita de musgos, seja elaborando uma kokedama. Ele entremeia as instruções de como criar o objeto e suas próprias narrativas. A atenção se divide entre um figurino vivo, um objeto concreto sendo criado e o objeto abstrato da memória compartilhada. Mas se isso não é um poema, de que forma a poética acontece? Na apresentação, o poema não é a forma, mas o conteúdo da cena. Um lugar onde tanto as palavras quanto o silêncio são complementares para sua construção. O atuante DIZ que isso não é um poema, ao mesmo tempo em que FAZ o poema acontecer no ato cênico. Roberto Carlos é uma das trilhas que envolve a memória, e é interessante perceber que, de certa forma, é uma memória comum a muitas pessoas. Em suas ações, Enoque brinda com o público e então entende-se que este brinde não é apenas recreativo, mas um brinde ao encontro (ainda que virtual), à memória e à saudade. Em determinado momento, o atuante entra em uma enorme caixa com terra, como se plantasse a si mesmo. A iluminação muda, colocando-se de forma intimista: com musgos no corpo, o atuante encontra nas brechas iluminadas, a energia necessária para que a planta não exista apenas de forma ilustrativa, mas como organismo vivo e pulsante. Ao nutrir os pés, o corpo e a cena de suas próprias memórias, o artista não apenas explicita um processo comum às plantas, mas sustenta a importância dos pés e do corpo no chão e no solo, de sentir o chão úmido - terra molhada e com fungos é o tempo agindo - e de colocar sua raiz e seu tronco (ambos físicos, metafóricos e cênicos) para o encontro com a luz: fotossíntese.
Não consigo ir muito longe pelas raízes profundas que me fazem parar e me sentir indefeso por sentir demais. Diferente da humanidade que evoluiu ao ponto de correr, gritar, pulsar, reivindicar.
Me pergunto: - Como me defendo se estou parado, pesado e exposto?
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- Sendo indestrutível!
28 de Setembro de 2021
[1]Artista-pesquisadora. Mestra em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará - PPGARTES/UFPA, na linha de pesquisa de Poéticas e Processos de Atuação em Artes. Artesã de cena, palavra e som. Escritora. Intérprete-criadora no projeto musical MANTO. Atriz e Colaboradora em Pesquisa e Montagem Cênica pela ETDUFPA. E-mail: rose.karimme@gmail.com
REFERÊNCIA
NASCIMENTO, Milton; BUARQUE, Chico. Cio da Terra. In: NASCIMENTO,
Milton. Geraes. Rio de Janeiro: EMI/ODEON, 1976. 1 CD: digital, estéreo.
60.299.231.
Ficha Técnica
Iluminação:
Bolyvar Melo e Enoque Paulino
Operação de iluminação:
Bolyvar Melo
Cenografia e Figurino:
Bolyvar Melo
Confecção de Figurino:
Enoque Paulino, Marcelo Andrade, Bruno Rangel e Assucena Pereira.
Atuacão:
Enoque Paulino.
Arte:
Raíssa Araújo.