JAZZ, LUSTRES E NOIR: a cena do crime é o palco da dança-teatral – Por Raphael Andrade
Montagem dança-teatral: "Quem Matou Jack?"
Montagem: Prática de Montagem dos Curso Técnicos de Dança, Cenografia e Figurino.
Raphael Andrade[1]
Dificilmente, na contemporaneidade, as especificidades artísticas não se hibridizam. Isso se dá, sobretudo, pelo valor atribuído às multiplicidades de linguagens que, quando combinadas, ampliam o potencial expressivo da cena. Nessa perspectiva híbrida, fruto de um exercício metodológico-pedagógico, nasce o espetáculo "Quem Matou Jack?", desenvolvido por discentes da Escola de Teatro e Dança da UFPA, como resultado da disciplina Prática de Montagem II. O processo envolve três cursos: Dança - Intérprete-Criador, Figurino Cênico e Cenografia.
O espetáculo propõe uma experiência rica, complexa e multifacetada. Misturando elementos de mistério e investigação — inspirados em clássicos da literatura como Agatha Christie e Sherlock Holmes, mas também em referências da cultura televisiva brasileira como o célebre "Quem matou Odete Roitman?" — a narrativa já interpela o público antes mesmo de começar, ao entregar um relatório investigativo que instiga o espectador a descobrir quem é a (o) assassina (o).
A intersecção entre teatro e dança é um dos pontos mais fascinantes da montagem, pois permite explorar narrativas de maneira inovadora. A presença de doze atuantes unindo dramaturgia falada e dançada resulta numa abordagem dinâmica, onde cada gesto, deslocamento e palavra contribuem para o desenrolar da trama. Essa fusão desafia as fronteiras disciplinares e propõe ao público novas formas de perceber o que constitui, afinal, o teatro e a dança.
Claro que essa mistura não é novidade — vide Pina Bausch (Tanztheater), Martha Graham, Isadora Duncan. Maurice Béjart (1971) dizia[2]: "a dança é parte do teatro"; e Rudolf Laban (2001)[3] compreendia o movimento como "manifestação exterior de um sentimento interior". O espetáculo evoca esses ecos, mas os ressignifica a partir de um contexto acadêmico, coletivo e criativo.
A experimentação teatral se acentua no desenho coreográfico e na força visual da cenografia, sob a orientação precisa do professor Beto Benone. O Teatro Cláudio Barradas é completamente transfigurado: assume aspectos de um bar de jazz dos anos 1940, com ares de cassino luxuoso, onde o tempo parece suspenso. Destaque para os dois lustres elegantíssimos em estilo Tiffany e para as luminárias de parede, de design minimalista inspirado na estética nórdica — que, diga-se de passagem, bem poderiam compor permanentemente o mobiliário do teatro, tamanha a harmonia que instauram no espaço. A disposição das mesas entre a plateia cria uma ambientação imersiva, em que o espectador é convidado a estar dentro da cena. Aqui, a luz não apenas ilumina: ela dramaturgiza, desenha atmosferas, pulsa como elemento narrativo e sensorial.
As indumentárias, sob a orientação da professora Claudia Palheta, constituem um espetáculo à parte. Elegantes, sofisticadas e tecnicamente bem resolvidas, as peças evidenciam o domínio de uma linguagem cênica que compreende a roupa não apenas como vestimenta, mas como extensão do corpo em movimento. Rendas guipir, strass, bordados, tules e cortes de alfaiataria são aplicados com apuro estético e funcional, respeitando a dinâmica corporal dos intérpretes-dançarinos. (Sim, eu amo brilho — e como diria o poeta: "Gente é pra brilhar").
Cada figurino contribui para a construção subjetiva dos personagens, ativando signos visuais que dialogam com suas presenças cênicas. Como afirma José Silva (2007)[4], ao discutir o figurino como linguagem, "o traje cênico é uma pele intermediária entre o corpo do ator e o olhar do espectador" — e é nessa camada simbólica que os figurinos se tornam também dramaturgia. Ainda assim, cabe uma ressalva: o figurino da detetive compromete, ainda que sutilmente, a amplitude gestual dos braços da intérprete — revelando o desafio sempre presente de equilibrar estética e mobilidade na criação de figurinos para a dança.
A trilha musical do Watson's Club, com referências à Broadway, contribui com o clima nostálgico e cinematográfico. O deslocamento de mesas pelo espaço cênico, guiadas por correntes de ar, potencializa a sensorialidade da cena — tudo se move, tudo respira dança, música e teatralidade.
A narrativa poética estrutura-se em solilóquios fragmentados e investigações conduzidas por Sarah, a detetive, interpretada com carisma e nuance pela atriz-dançarina ou melhor-dançarina-atriz). Ela transita entre passado e presente, puxando fios de memória enquanto investiga os mistérios da família Watson. Cada personagem-dançarino representa um universo próprio, revelando em cena os conflitos entre sonhos, frustrações, desejos e conquistas.
Tragédia e melodrama se fundem em pantomimas precisas. A expressividade do corpo sobrepõe-se à palavra, revelando a força do gesto. Não se trata de um teatro calcado na verossimilhança ou na elaboração verbal da atuação — e sim de um teatro coreográfico, que pulsa na espontaneidade física e no gestual simbólico. A atuação das/dos intérpretes do segundo ano do curso de intérprete criadores em dança revela coesão nas cenas de grupo, maturidade nos solos e domínio técnico nos números de jazz. Destaca-se a sólida participação do personagem Elliot Watson, entre os intérpretes masculinos.
A direção cênica, assinada pela dupla Mayrla Andrade e Larissa Chaves, é conduzida com segurança, sensibilidade e inventividade. Larissa, representante da nova geração da cena paraense, demonstra maturidade criativa ao transitar com desenvoltura entre a linguagem da dança e os códigos teatrais. Mayrla Andrade, por sua vez, traz o respaldo de mais de duas décadas de atuação no cenário artístico, especialmente à frente da consagrada Companhia Ribalta de Dança, referência em experimentações coreográficas na região Norte. Essa articulação entre juventude e experiência confere à direção um equilíbrio singular, em que o frescor das proposições se alicerça na solidez de uma trajetória estética bem construída.
Do ponto de vista teórico, a proposta diretiva alinha-se às concepções de uma pedagogia da criação interdisciplinar, como pensada por autores como Hans-Thies Lehmann (2007)[5], que defende um teatro pós-dramático centrado na performatividade e na polissemia dos signos cênicos. A encenação foge de hierarquias formais e privilegia um processo colaborativo, em que os intérpretes-criadores são parte ativa da dramaturgia. Assim, a cena se organiza como um campo de experimentação sensível, onde corpo, espaço e imagem dialogam de maneira rizomática, conforme propõe Deleuze e Guattari (apesar de eu não gostar da escrita desses dois pensadores).
Mais do que dirigir, Mayrla e Larissa orquestram atmosferas. Elas criam campos de presença em que os atravessamentos entre dança, teatro e instalação plástica não apenas coexistem, mas se interdependem. Ao extrapolar o caráter acadêmico da montagem, a dupla evidencia como processos pedagógicos podem gerar criações de alta potência artística — e como a formação em artes da cena pode se constituir, também, como campo de invenção estética
Portanto, o espetáculo "Quem Matou Jack?", mesmo com apenas quatro dias em cartaz, revela desde já fôlego para novos voos — não apenas enquanto exercício pedagógico, mas como uma produção artística de densidade estética e conceitual. Sua força reside justamente na recusa de enquadramentos rígidos: não se busca aqui a atuação "teatral" em sentido clássico, baseada em uma lógica mimética ou de representação naturalista. O que se constrói é um espetáculo de linguagem plural, onde teatro, dança, performance e instalação plástica se entrelaçam em um jogo cênico de alta potência sensorial.
Esse caráter híbrido aproxima-se das noções de teatro expandido, como discute André Carreira, em que os limites entre as artes da cena se tornam porosos, permitindo experiências que extrapolam a linearidade narrativa e promovem um modo de criação baseado na presença, na corporeidade e na ativação do espaço. A dramaturgia proposta não se ancora em uma fábula coesa, mas em uma tessitura de atmosferas e estados de corpo que tensionam a ideia de enredo — remetendo ao noir, mas sem se prender a ele.
Trata-se, assim, de um teatro coreográfico em ebulição, que explora a fisicalidade como discurso, o gesto como signo, e a cena como campo expandido de investigação. A investigação dramatúrgica em torno do assassinato de Jack serve como metáfora para uma busca mais profunda: o assassinato de certezas, de fronteiras, de categorias fixas. O espetáculo propõe que o mistério maior talvez não esteja em descobrir "quem matou", mas em revelar como dançar e atuar, ao mesmo tempo, com o corpo em estado de ARTE.
06 de abril de 2025
[1] Artista-professor-pesquisador paraense. Formado pelo Curso Técnico em Teatro (ETDUFPA, 2015) e Licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2018). Mestre em Arte e atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/UFPA).
[2] BÉJART, Maurice. O Teatro Total. Tradução de Alda de Souza. Lisboa: Arcádia, 1971.
[3] LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. Tradução de Ione M. Szalay. São Paulo: Ícone, 2001.
[4] SILVA, José de Anchieta da. Figurino: uma linguagem da cena. São Paulo: Senac, 2007. Obs.: A citação original no contexto do livro é: "O traje cênico é uma pele intermediária entre o corpo do ator e o olhar do espectador." (SILVA, 2007, p. 34)
[5] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Tradução de Márcia do Amaral Peixoto e Luiz Fernando Ramos. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
FICHA TÉCNICA
Intérpretes-Criadores:
Joyce Leonardo
Aline Guimarães
Mille Melo
Marceli Katharine.
Lene Nascimento
Holliver Haddid
Wes Maciel
Kisuki Ghidihi
Neuza Nascimento
Letícia Watson
João Roosevel
Jonh Monteiro
FIGURINISTAS:
Elcio Lima
Hugo Corrêa
ASSISTENTES DE FIGURINO:
Igor Quadros
Thalyson Moraes
Rafaela Cruz
Rosário Oliveira
ASSISTENTES DE MAQUIAGEM:
Sara Letícia
Carla (Lic. Em Teatro)
Fabrício Sousa
Enzo Gabriel
PREPARAÇÃO VOCAL E TEATRAL:
Carla (Lic. Em Teatro)
ORIENTAÇÃO DE FIGURINO:
Cláudia Palheta
CENÓGRAFOS:
Adriana Jordana
Felipe Campos
Ingrid Bubuiar
Ronald Almeida
ASSISTENTES DE CENOGRAFIA:
Celia Guimarães
Marcia Gonçalves
Vitorine Carrera
ORIENTAÇÃO DE CENOGRAFIA:
Beto Benone
ILUMINAÇÃO CÊNICA:
Felipe Campos
Ronald Almeida
ORIENTAÇÃO DE ILUMINAÇÃO CÊNICA:
Iara Souza
Social Midia e Designer:
Brunno Euller
Bueno Santos
Joyce Leonardo
FOTOGRAFIA E FILMAGEM:
Danielle Cascaes
Valério Silveira
DIREÇÃO GERAL E ARTÍSTICA:
Larissa Chaves e Mayrla Andrade
Esse espetáculo agradece a colaboração das seguintes pessoas para a sua
realização:
Prof. Tarik Coelho, Diretor da Escola de Teatro e Dança da UFPA;
Profª. Grazi Ribeiro, Vice-Diretora da Escola de Teatro e Dança da UFPA
Profª. Adriana Santos, Coordenadora Geral dos cursos técnicos da Escola de Teatro e
Dança da UFPA;
Profª. Gaby Albuquerque, coordenadora do Curso Técnico em Intérprete-Criador em
Dança da Escola de Teatro e Dança da UFPA;
Profª. Valéria Andrade, Diretora do Teatro Universitário Cláudio Barradas.
Instagram: @etdufpa e @quemmatoujack.
REALIZAÇÃO:
Escola de Teatro e Dança da UFPA
Curso Técnico em Dança – Habilitação em Intérprete-Criador
Curso Técnico em Cenografia
Curso Técnico em Figurino Cênico