Joel – Por Arthur Ribeiro
Montagem Teatral: O Gato de Botas
Cia de Teatro Corifeus
Crítica publicada originalmente no blog "O Teatro Como Ele É" https://oteatrocomoelee.wordpress.com/2018/05/01/joel/
Arthur Ribeiro[1]
O Joel sempre foi um rapaz de raciocínios rápidos, ideias criativas e, sobretudo, uma autoestima desconcertante. Lembro nitidamente que, ao convidá-lo para compor o elenco do primeiro espetáculo do grupo de teatro que temos até hoje na escola, ele, do alto de seus 10 ou 11 anos, pulou aquele "sim" que o script das conversações adultas mascaradas me fazia esperar e tacou-me um imediato "posso ser o Mané?", referindo-se ao personagem que seria o protagonista da peça. Pois o Joel não apenas foi o Mané, arrancando elogios da plateia, como tem se tornado desde então o membro mais fiel do grupo, sempre colaborando para reverberar as minhas direções, contribuindo para a integração dos membros e assumindo desafios dos mais prosaicos, como fazer par romântico com uma colega diante da escola toda, aos mais improváveis, como apresentar junto comigo uma comunicação oral em evento acadêmico na Escola de Teatro e Dança da UFPA.
É inegável, portanto, que o Joel se engaja visceralmente em minhas ideias sobre teatro, que envolvem, entre outras coisas, uma atenção especial às palavras e aos silêncios do diálogo, uma busca pela ousadia criativa e pelo aprofundamento psicológico. Mas é enganoso pensar que o Joel vá adotar aquela visão de arte em todas as situações de sua vida. Ele continua consumindo produtos de entretenimento de televisão e de internet, em que a narrativa é padronizada, em que quase sempre se toma o espectador como uma tábula rasa de sensações, em que roteiros, cortes e trilhas sonoras são feitos sob medida para provocar esta ou aquela reação. Daí se explica que algumas vezes o Joel traga para os processos do nosso grupo ideias que têm dificuldade de se encaixar nas minhas: piadas chupadas de humorísticos televisivos, explicações monológicas de fatos dramatúrgicos, inserção de efeitos cênicos reforçadores de suspense. O caso mais emblemático foi quando ele sugeriu com insistência que uma trilha sonora da série The Walking Dead fosse reproduzida ao final de nosso espetáculo mais recente; segundo ele, a música reforçaria a expectativa do público sobre o destino da personagem que encerrava a peça. Toda a minha argumentação de que essa expectativa não era tão importante, de que o final era daquele jeito por outros motivos, não pareceu convencê-lo: até hoje ele acredita na qualidade da ideia...
Conviver com o Joel, portanto, é uma experiência ao mesmo tempo de felicidade e de perplexidade, pois os potenciais e os limites de minhas convicções estão ali, cruzando-se e questionando-se mutuamente. Fazer teatro com aqueles jovens da periferia acaba se revelando como uma guerrilha estética, em que há um paradoxo constante entre a busca de uma gestão democrática dos trabalhos do grupo e os choques entre os diversos discursos e subjetividades envolvidas no processo, em que se atravessa a voz do Outro inconsciente da psicanálise. Formulam-se, assim, muitas questões particularmente complicadas, e talvez insolúveis: como impor parâmetros estéticos sem maltratar as propostas legítimas dos atores? Como manter para eles a experiência prazerosa de fazer teatro sem torná-la mera reprodução do que já conhecem? Como convencê-los da necessidade de se atentar para o discurso sociopolítico de uma peça se a comunicação de massa os ensina a prescindir disso? É possível fazer teatro com jovens e para jovens sem precisar aderir à estética de massa?
O Gato de Botas, espetáculo da Cia. de Teatro Corifeus, apresentado no último sábado no Casarão do Boneco dentro da programação do Amostraí, me fez lembrar do Joel e de todos esses problemas da minha relação com ele. Foi, a princípio, desconcertante para minhas convicções sobre teatro verificar a reprodução de modelos massificados ocupando integralmente a encenação. Os figurinos, emprestados das concepções visuais mais conhecidas de contos de fadas, buscando reproduzir as distinções sociais típicas da temporalidade medieval do gênero, pareciam uma escolha temerária diante dos poucos recursos disponíveis para a confecção; alguns trajes resultavam mais bem acabados do que outros, comprometendo o conjunto visual. Em contraste, a concepção simples e moderna do visual da bruxa, cuja obscuridade vinha de um maquiavelismo juvenil e não dos figurinos, maquiagens e trejeitos tradicionais, parecia indicar um caminho bem mais promissor para a peça, se tivesse sido tomado para todos os personagens.
A panada azul com entradas que compunha a cenografia custou a se justificar a meus olhos, principalmente em se tratando de uma apresentação no Casarão do Boneco, cuja imponente vegetação do quintal provavelmente serviria muito bem ao cenário natural do espetáculo, evidente na cena de abertura, e ao clima aristocrático das demais cenas. As trilhas sonoras épicas de temas medievais ao fundo e as composições corporais e vocais dos atores sustentadas em aspectos formais, sem organicidade (impossível não se constranger com a caminhada saltitante das camponesas ou com a voz artificialmente alteada do Gato) e, principalmente, o problema discursivo de estereotipar personagens de acordo com ideias dominantes e preconceituosas (o criado como a pessoa com deficiência, a princesa como a jovem branca e loira), completaram o que foi, para mim, francamente angustiante de acompanhar, apesar do tempo curto de apresentação.
Mas é aí que volto ao Joel, o ator mais fiel do meu grupo, um jovem periférico como os que atuavam em O Gato de Botas e que provavelmente não veria, como a equipe de O Gato de Botas também parece não ver, nenhum desses problemas que elenquei acima. Mesmo com a certeza que tenho a respeito de minha visão de teatro, de sua potencialidade artística, de sua coerência histórica e filosófica, sou forçado a considerar também que outras visões, cunhadas em outras tradições, existem, estão aí, e não serão substituídas pela minha. A experiência me faz relutar em afirmar minha concepção como absoluta, um autoritarismo que ainda respinga de certas análises marxistas da arte. Prefiro antes defender que uma obra de padrão massificado ou uma experimental não têm valor por si, mas sim de acordo com o bom acabamento dos elementos no interior de suas propostas, formando um contínuo horizontal e múltiplo, e não vertical e estanque. Por esse motivo fiz os comentários acima, tentando compreender a obra dentro de sua linguagem, e quem sabe contribuir com o desenvolvimento dela. O Joel, assim como a equipe de O Gato de Botas, têm o direito de realizar suas formas e seus desejos de fazer arte, e nem precisam necessariamente conhecer as outras possibilidades existentes. Tenho a impressão de que, seja qual for o caminho escolhido, o que importa, no final, é estar disposto a uma interlocução democrática, como deduzo, das falas ao final do espetáculo, que a Cia. Corifeus parece estar. E como, enfim, espero que o Joel também esteja aprendendo a estar.
02 de Maio de 2018.
[1] Ator e professor de Português; participante do minicurso "Por uma crítica menor".
Ficha técnica:
Montagem Teatral:
O Gato de Botas
Montagem:
Cia de Teatro Corifeus
Gato de Botas: Bruno Andrade
Marquês: Renan Leão
Camponesa: Elen Silva
Camponesa: Fernanda Soares
Rei: Renan Evans
Princesa: Bianca Duarte
Cocheiro: Celio Amador
Feiticeira: Valeria Gabriele
Criado: Jorge Miranda
Sonoplastia:
Ailton Souza
Direção:
Jorge Miranda