Minha amiga chuva – Arthur Ribeiro
Montagem Teatral: Meu amigo inglês
Montagem: um.dois.tres.cia.de.teatro
Publicado originalmente no blog O Teatro como ele é https://oteatrocomoelee.wordpress.com/2018/02/05/minha-amiga-chuva/
Arthur Ribeiro[1]
Chovia muito no dia três de fevereiro. Não era dia de sair de casa. Quem se arriscou sentiu a potência da tempestade. Na Casa dos Palhaços, o telhado metálico recebia a inclemência das gotas que o golpeavam torrencialmente, tornando ruidoso o espaço da caixa preta onde Meu amigo inglês começava naquele instante. O palco simples, o ambiente intimista e a cenografia leve me faziam temer que os atores não conseguissem se sobrepor à força da natureza. Não sei se essa falta de confiança inicial prejudicou minha fruição da peça. O caso é que a chuva aliviou depois de alguns minutos, mas os atores não me pareceram substituí-la com o mesmo vigor.
Acompanhei com interesse o desenrolar de um dia na vida de Teodoro, palhaço de circo que sofre do mal de Parkinson. A doença, apesar de não o impedir de se apresentar no picadeiro, torna-o cada vez mais dependente do auxílio da esposa e parceira de apresentações, Madalena, o que abala sua autoestima e o faz pensar em se aposentar. Meu olhar para essa fragilidade quase infantil da figura de Teodoro não deixava de ter certa curiosidade: tenho um caso da doença na família, em um parente do sexo feminino, e sempre o observei com uma atitude muito positiva e uma postura muito independente diante da doença, o que me fazia querer investigar a alma daquele palhaço para desvendar a natureza de seu comportamento. O texto contribuía para me provocar: o afeto entre o casal, entremeado pela sombra do ciúme e pelo medo do amanhã, me era mostrado com delicadeza, longe do melodrama, porém deixando que se insinuasse por vezes a carga emocional que, eu esperava, encontraria uma síntese dali a pouco.
Mas, ao mesmo tempo, algo me dizia que esse desejo não seria correspondido. A cada fala dos atores e a cada movimento deles em cena, eu sentia um peso da marcação, da dicção e da impostação que não me deixava ver com naturalidade aquele casal. Me senti quase o tempo inteiro em alguma etapa intermediária do processo, em que se estivesse buscando a decupagem do texto ou a compreensão do fio dramatúrgico, para posterior procura da organicidade da presença cênica do elenco, que eu procurava em vão. Acentuava esse desconforto minha dificuldade em ver sintonia entre a proposta de espaço cenográfico e a atuação. A unidade de lugar proposta era um trailer em que os palhaços viviam, uma residência de metal cujo desconforto e instabilidade me pareciam uma poderosa metáfora às sensações experimentadas por Teodoro, de estar preso dentro da própria pele, e por Madalena, de estar melancolicamente ligada a ele. Eu esperava, assim, atuações abafadas, cinzentas, coerentes com a casa de metal. Mas não era o que eu via; o espaço parecia dar liberdade demais aos corpos, que podiam transitar entre dois ambientes do palco. Romana Melo chegou a girar euforicamente em cena! A proposta era, no mínimo, indecisa. Talvez por isso mesmo eu veja como as cenas mais interessantes da peça os momentos em que o casal se transporta para o picadeiro, quando o simples recurso de subir nos bancos é suficiente para os atores transmitirem a amplitude e a magnitude próprias desse outro espaço.
Meu amigo inglês terminou e, embora houvesse um desfecho dramático no palco, meus descontentamentos com a obra me impediram de encontrar nele as respostas que eu queria. O que voltou ao primeiro plano foi ela, a chuva, que retornava com força ao fim do espetáculo e prendeu todos na Casa dos Palhaços por mais algum tempo, algo constrangidos, trocando poucas palavras sobre a peça. Pensando bem, talvez a chuva estivesse desse jeito, amedrontador que lhe é próprio, oferecendo-nos sua amizade e, quem sabe, algumas lições sobre vigor, resiliência e profundidade.
5 de fevereiro de 2018.
[1] Ator e
professor de Português; participante do minicurso "Por uma crítica menor".
Ficha Técnica:
Montagem teatral:
Meu amigo inglês
Elenco:
Mario Zumba e Romana Melo
Texto:
Mario Zumba
Cenografia:
Marton Maués e Mario Zumba
Figurinos:
Aníbal Pacha
Iluminação:
Marcelo Villela e Marcelo David
Produção:
Mario Zumba e Marton Maués
Direção:
Marton Maués