Na Mente e na Areia – Por Maria Isadora Gomes

05/07/2022

Montagem teatral: "Fale com estranho"

Montagem: Coletivas Xoxós

Maria Isadora Gomes do Carmo[1]

O espetáculo "Fale com estranho" foi realizado pela Coletivas Xoxós e é uma adaptação do conto "O Homem de Areia" de E.T.A Hoffmann. Apesar de ter sido "simples" foi muito bem construído, te fazendo prender o fôlego e a atenção do início ao fim, para não perder nenhum detalhe, me surpreendendo cada vez mais com o inesperado.

No início, houve uma preparação da cena, uma separação e organização dos objetos que compunham o palco. Dispostos no pequeno espaço havia um vaso de planta e a foto de uma criança que se encontravam na parede, quatro sacos de areia, duas caixas de madeira e os objetos que não estavam a mostra, mas que logo teriam sua participação, afinal cada mínimo detalhe importava para a construção da peça e do significado. Tudo aquilo cativava, deixando a imaginação trabalhar, recordei então da minha infância, quando brincava com meus primos na areia, e no cenário do espetáculo surgiam questionamentos sobre o uso dos objetos presentes e alguns deles faziam parte da mesma lembrança que tive.

Após preparar a cena, o personagem pegou o pequeno vaso de flor e permaneceu com ele. Deitou-se no chão, com os pés encostados na parede e os braços abertos, os olhos fechados davam a impressão de estar dormindo, ele me transmitia uma sensação de relaxamento e que estava flutuando, mas com movimentos pesados e lentos em uma posição como se fosse dar cambalhotas. Logo, houve o despertar, com os olhos bem abertos e sua atenção ao público, a respiração compassada e forte, observava cada uma das 20 pessoas presentes, coletando o detalhe e as peculiaridades de cada um.

A sua voz era grave, a fala tinha um tom de loucura, o que fora evidenciado mais tardiamente, e a aparência cansada. Ele então, depois de um silêncio, disse: "Vou contar o que aconteceu comigo, o que eu vi", a necessidade na voz evidenciava que ele precisava contar a sua história. Era algo sobre a sua infância, a sua família, o pai bebia e pelas entrelinhas era violento, a mãe tentava proteger os filhos. Então contou uma história sobre o homem da areia. O personagem perguntou: "Mamãe, quem é esse homem da areia que separa a gente do papai?", para mim era visível que esse tal homem da areia era o próprio pai, porém tinha sido a babá que contara ao pequeno Natanael que ele era um homem mau, que vinha atormentar as crianças da casa que faziam tolice na hora de dormir, e que depois comia os olhos delas, sobrando apenas os buracos pretos e vazios.

Ele contava interagindo com a plateia, alterando o tom de voz e utilizando o cenário. Pegou o quadro que continha a foto de uma criança, dando a entender que era ele, colocou a sua cabeça dentro dele e o vestiu, por meio de uma tela que havia atrás. Proferindo as palavras e falando alto, ele conseguia dominar todo o espaço com o tom grave da sua voz, a intensidade da música aumentava e as luzes piscavam, tornando um ambiente assustador. Ele rasgou a foto do quadro, adentrando nele e assim era possível ver o seu rosto. O susto que eu levara naquele momento só transmitia o objetivo da peça, logo percebi que a infância era para ser algo bom e na maioria das vezes, acabava não sendo.

Apesar da sua relação com o público ser importante, a sua interação com os objetos da cena era fulcral para a compreensão do espetáculo, principalmente com uma das caixas de areia, que ao manipulá-la jogava a areia em cima de si, gerando desconforto. Ele retira da areia uns óculos escuros e pondo ele acaba escondendo os seus olhos que estavam vermelhos. Sem parar de contar a história, de dentro da caixa ele tira uma mão, que era de um boneco, mas representava alguém que estava morto, pegando a mão do boneco que estava para fora da caixa ele começa a manuseá-lo e o levanta lentamente, tirando da imersão da areia.

Mexendo a cabeça do boneco de acordo com a narração da história, entendo que o boneco é ele quando criança. Ele também pega da caixa uma cabeça de um homem, feita de barro ou gesso, representando o seu pai, então fala agressivamente com ela e depois o coloca na outra caixa de areia, que estava vazia, despejando e espalhando a areia que estava dentro dela, formando uma imagem que seria um corpo de areia. É uma surpresa quando aquela cabeça sem corpo aparece em cena, algo inesperado, a partir daí eu não consigo ter mais expectativas sobre aquela peça, apenas vejo e aprecio.

Ele começa a brincar com um carro de madeira e faz barulhos com a boca do som do carro, logo uma segunda cabeça se faz presente e ela representa um amigo do pai de Natanael, que era advogado mas trabalhava junto com ele, como alquimista, e por ele ter uma aparência estranha e nada agradável o menino associou ele como o temível homem da areia. Ao contar a história ele faz movimentos intensos com a cabeça na mão, narrando a sua visão da história. Em seguida houve a morte de seu pai, e logo o menino colocara a culpa do incidente nas costas do advogado. A cena finaliza com ele colocando a cabeça na caixa, na outra extremidade e mexendo na areia formou-se imagens, que para mim eram abstratas, mas tinham um significado.

As luzes ficam menos intensas e uma voz feminina está presente através da caixa de som, o personagem está sentado sobre a caixa de areia e com um óculos de grau no rosto, aparentemente se deu um salto para o futuro. A mulher que está falando se chama Clara e foi um possível interesse amoroso de Natanael, ela está lendo uma carta que escreveu endereçada a ele, revelando que seu pai fora morto em um acidente, não por assassinato como ele imaginara. As suas expressões ao ouvir aquela carta são bem evidentes e de certa forma debochada por não querer acreditar e saber a verdade sobre aquele acontecimento. Então ele pega um cigarro e o acende, o que representa a sua frustração e entrega-se ao vício, o local fica infestado da fumaça e do cheiro que exala, me deixando bem desconfortável. Enquanto ela fala percebo que talvez o protagonista seja mesmo problemático e esteja alucinando, contando uma história de coisas que aconteceram apenas na sua cabeça, distorcendo a realidade. Ele revela uma revolta sobre o que a Clara disse e imagino que seja ruim ouvir da pessoa que você ama que tudo não passa de uma mentira e que você é louco, por isso me familiarizei do sentimento que ele teve, por já ter passado pelo fato de que a única pessoa que você esperava apoio e aconchego não te oferecer e você se decepciona.

Sempre havendo uma intensidade na música, ele começa a se movimentar, rápido e ferozmente como se fosse uma dança e com as luzes piscando. A partir disso, percebo que é visível que o espetáculo é composto por vários contextos e que a partir de pequenas coisas e ações pode haver infinitos significados dentro de uma cena, fazendo você esperar o inesperado e causando um certo desconforto por sair da sua "zona de conforto" e explorando o seu inconsciente.

A iluminação e o ritmo da música eram perfeitamente combinados com os movimentos do ator. A trilha sonora intimidante te envolvia, deixando um suspense no ar, como se você estivesse na cena, sentindo tudo o que o ator queria repassar e até mais que isso, despertando sentimentos que você nem sabia que poderiam existir, mas estavam ali presentes, no seu mais íntimo.

Por fim, assim como começou, ele arrumou a cena, colocando todos os objetos dentro de uma lona, e como se aquilo fosse seu túmulo o vaso de planta ficou em cima, demonstrando cumplicidade. Seria aquilo realmente o símbolo da sua morte?

26 de junho de 2022

[1] Graduanda em Licenciatura em Teatro pela UFPA, turma de 2022. 

Ficha Técnica

Dramaturgismo, Concepção de Sonoplastia e Atuação:

Leoci Medeiros.

Assistente de Dramaturgismo:

Yasmin Ramos.

Assistente de Direção e Operação de Sonoplastia:

Vanessa Lisboa.

Voz em off:

Naisha Cardoso.

Concepção de luz:

Patrícia Gondin.

Projeto Gráfico, Fotografia Cênica e Operação de Luz:

Danielle Cascaes.

Concepção de Figurino e Maquiagem:

Coletivas Xoxós.

Laboratório de Performance Vocal:

Thales Branche.

Assessoria Terapêutica:

Marcos Vinicius Lopes.

Assessoria de Imprensa e Multimídias:

Lucas Corrêa.

Assessoria Psiconceitual e Direção de Palco:

Roberta Flores.

Encenação e Anatomia Cenográfica:

Wlad Lima.

Direção Cênica:

Andréa Flores.

Residência Artística:

Teatro do Desassossego.

Realização:

Coletivas Xoxós.