NÃO TEMA O FOGO! – Por Hudson Andrade
Montagem Teatral: As Bruxas de Salém
Produção: Folhetim Produções Culturais
Hudson Andrade[1]
O que é a verdade?
A pergunta de Pôncio Pilatos ficou sem resposta, pairando no ar e no silêncio. Talvez pela obviedade da resposta, talvez pela ausência dela. Talvez porque essa questão geralmente é tratada dentro da dicotomia verdade-mentira, certo-errado, falso-verdadeiro. Mas não é esse o debate - melhor seria o embate - de As Bruxas de Salém, de Guál Dídimo. O próprio mote do espetáculo alerta para isso: Ninguém se importa com a mentira se a verdade não existe mais. Parece dicotômico, cartesiano. Parece simplista.
No entanto, o desenrolar da trama também assinada por Dídimo mostra que não existe UMA verdade tanto quanto a mentira é múltipla. Ela, a mentira, nascida e alimentada, precisa sempre de outra mentira pra se sustentar; e tantas outras, tantas quantas possíveis para sustentar a fragilidade de suas pernas curtas. Aqui, mais um ponto para o mais recente trabalho da Folhetim, porque vamos vendo a mentira se espalhar como uma doença ruim e o pensamento de que encontrando o paciente zero, poderemos debelar a infecção. No entanto, a origem exata reside onde não vemos com precisão, porque não está escondida, mas camuflada, à espreita, sorrateira e cruel.
Mas a dramaturgia é apenas uma das facetas de uma encenação e a ótima dramaturgia de Dídimo esbarra na fragilidade do seu elenco. Digo fragilidade porque ele não é uníssono. Em cena, um elenco de oito mulheres se divide entre o excesso pouco contido de Tainah Leite, que interpreta Abigail, a que insufla o conflito e quem deveria manter viva a brasa da trama, mas que é muito onde deveria se conter e pequena demais onde deveria ser querosene. Temos a caricatura de Kátia Menezes e Lohane Taketa, com vozes, olhares, corpos e tiques demais não só para seus personagens periféricos, mas para personas cujas superstições e incertezas deveriam minar por dentro e com lentidão a estrutura da história. Layse Souza, Nathália Nancy e Mônica Moura só seguem o fluxo. O texto e a encenação lhes dão boas oportunidades de se adonarem do palco e da cena, mas elas puxam consciente ou inconscientemente as rédeas e pouco avançam, mesmo estando entre elas o personagem inquisidor, que se não é um homem, deveria ser animus. O elemento que se supõe restituiria a ordem é na verdade o fomentador do caos, da desordem, da justiça rude camuflada de lei. O pulso violento e masculino de uma sociedade opressora.
O elenco de As Bruxas de Salém ainda conta com Luana Oliveira e Rita Ribeiro, duas atrizes diferentes em estatura física, em idade, em experiência de palco, mas imensas em atuação. Contidas quando devem ser, conduzem-nos para uma sequência final construída com cuidado, com precisão, onde texto, luz, encenação se interrelacionam. Luana e Rita explodem e nos premiam com um final incrível, generosamente compartilhado com todo o elenco.
É pouco provável não fazer algumas relações com o Brasil atual - se se vai ao teatro com a mente além. Uma, a perigosa intervenção de instituições religiosas na gestão do Estado, como uma influência perigosa para a liberdade, a importância capital da ciência e aos direitos adquiridos pela lei. Outra, o comportamento equivocado e simplório de mitificar pessoas e instituições, de dar ares de herói a juízes e infalibilidade a seus julgamentos, sobretudo se baseados em teocracia. Mas essa relação não autoriza um "caco" de citar a ação de uma personagem como "delação premiada" (?!).
Permitam-me alguns apontamentos e destaques que julgo importantes. O trabalho de criação da dramaturgia, incluindo a viagem e pesquisa de Guál Dídimo na própria Salém, no Estado estadunidense de Massachussets. Um texto bem editado, recortes temporais interessantes e informação na medida certa. O figurino bonito e funcional, no entanto, parecia estrear junto com a peça e a textura e o brilho do tecido negavam uma história que falava de uma sociedade em franco puimento em sua tecitura.
Por fim, o desnecessário uso de microfones. O reduzido espaço do Waldemar Henrique, a proximidade do público posto como membros da corte inquisitorial, geraram o desconforto da sensação de uma voz artificial, alguma microfonia e um elemento estranho bem no meio da testa das atrizes, visível demais pra ser esquecido ou negado; o que me parece mais problemático, a criação de uma bengala para a atuação. Em vários momentos, à despeito do recurso, não se ouvia a fala da atriz. Não nego o uso de equipamentos nem facilidades tecnológicas sempre bem vindas, mas quando efetivamente se fizerem necessárias e devidamente manipuladas.
As Bruxas de Salém é uma mostra de um teatro paraense plural, com referências para além de temas locais. É um exercício de dramaturgia e de interpretação que precisavam ser mais aprofundadas. A Folhetim Produções Culturais tem trazido essa linguagem que se soma a todo o arcabouço de uma arte nortista que há muito não engatinha, mas ainda precisa fincar pé na areia movediça da cultura brasileira, sobretudo nesses tempos onde tudo o que pode esclarecer, dar senso crítico e responsabilidade sócio-artístico-cultural é tratado como elemento de cooptação quando na verdade, liberta.
Bruxas existem, mas o mal é outro.
08 de Julho de 2019.
[1] Um cara de Teatro.
Ficha Técnica
Montagem Teatral:
As Bruxas de Salém
Produção:
Folhetim Produções Culturais
Elenco:
Tainah Leite, Luana Oliveira, Layse Souza, Nathália Nancy,
Rita Ribeiro, Mônica Moura, Kátia Menezes e Lohane Takeda
Dramaturgia e Direção Geral:
Guál Dídimo
Desenho de Luz:
Breno Monteiro
Desenho de Som:
Felipe Fonseca