Nenhuma história se faz com uma só voz – Por Karimme Silva

17/04/2025

Montagem Teatral: "IA – Inteligência Ancestral"

Montagem: Cursos Técnicos da ETDUFPA 

Karimme Silva[1]

O desafio de falar de dentro. Já fiz isso lá em 2016 em relação ao Animalismo[2] (meu texto inaugural para a Tribuna, quando o projeto ainda era um blog), mas com uma distância temporal entre atuar e assistir. Agora é outro tempo, o tempo onde passado-futuro se reencontram. O tempo de retorno para essa mesma casa, mas em outro lugar. O tempo da direção é sempre outro, tempo de percepções sobre a obra em processo, tempo de escolhas sobre o que é coerente pra cena, tempo de desafios sobre este lugar e pensamento, tempo das proposições e de perceber nas entrelinhas o que funciona ou não para cada cena/discurso, um tempo de olhar (e ouvir) tudo o que veio antes. No contexto de espetáculo para os Cursos Técnicos na ETDUFPA. Com olhos de onça, também vim de lá. Honra o lugar de onde tu vieste.

IA - INTELIGÊNCIA ANCESTRAL é sobre tecer o presente para o futuro[3]. A partir do mote temático do retorno do manto tupinambá da Dinamarca para o Brasil, esse espetáculo busca resgatar os passados esquecidos. Mas só se resgata aquilo que não se esquece, e é importante ter memória boa. Pra que tu não esqueça de onde vieste e principalmente: quem tu és. De onde vim até chegar aqui? De onde viemos para ser quem somos? Quem nos tornamos quando a história tenta apagar a nossa voz? Os povos originários seguem em lutas para que suas vozes não sejam esquecidas, apagadas, desrespeitadas, diminuídas. A história que tentam contar é uma história que diminui esses povos, a história te contaram é plágio sobre a morte de outro povo. [4]

Historicamente, são várias as vozes que não foram ouvidas. Mas em um contexto como professora de teatro, como seria trabalhar com as vozes para atuantes em formação? Mais adiante abordarei as vozes; antes disso, vem o contexto geral do espetáculo. Perceber de dentro uma prática de montagem - atualmente chamada de Criação de Espetáculo - é mesmo como voltar ao passado. Olhar os praticáveis agrupados no Teatro Universitário Cláudio Barradas me relembra Um Certo Faroeste Caboclo (2012), espetáculo dirigido por Marluce Oliveira e Paulo Santana pro Curso Técnico em Teatro da época, minha primeira aventura teatral nessa casa. São muitas coisas: os atuantes se maquiando no camarim, as equipes de cenografia e figurino em percurso, os técnicos do teatro ajustando os maquinários, o iluminador nivelando a mesa de luz, os músicos afinando e posicionando seus instrumentos, o processo minucioso da semana de montagem de uma peça teatral, a grande carpintaria cênica. Nós voltamos lá atrás pra lembrar do porquê estamos aqui. É preciso ter respeito com essa caminhada, a tua, a nossa. IA é, antes de tudo, um manifesto de respeito. A jogada de trabalhar com uma estética futurista é um dos grandes acertos da montagem, propondo um museu de ARTEFATOS que não existem mais. Não é uma linguagem ilustrativa, tampouco de imitação, é outro lugar onde o céu já caiu. É Belém em 2125, mas poderia ser Belém em 2025 com suas árvores de plástico em uma promessa falida de "progresso" chamada COP-30. Nosso céu já está caindo? Nossa DAS - Diretora de Assuntos Sarcásticos - do museu nos relembra que nem sempre se trata só de ficção e que a qualquer momento da realidade difícil de anos na prefeitura/governo de Belém, sempre pode ser o último dia.

Em Inteligência Ancestral, a cenografia que propõe o museu e desloca o público é uma proposta experimental e a iluminação acompanha esse ritmo: luz negra em neon, causando um impacto cromático e imersivo. O experimentalismo também joga com o risco: pela proposta, o público é menor, porém não está passivo diante da obra; ele se desloca e é preciso direcionar essa visitação, a qual os atuantes conduzem nas entrecenas. Todos os atuantes têm suas funções bem delimitadas, inclusive para pensar/agir com os deslocamentos e critérios de acessibilidade. A imersão do público é evidente quando precisam tirar os sapatos para entrar em um espaço específico (aprende a pisar direito na terra, com teus pés no chão). Respeite quem pisou nesse território muito antes. Em meio às cenas, uma interessante instalação sonora com depoimentos de lideranças indígenas; são as outras mídias dentro do teatro, não como aparato a atuantes, mas como canais de mensagens das vozes mais antigas, falando com o público por meio do toque. Corpo é tecnologia que ativa a máquina (por meio dos próprios pés, respeita os teus passos até aqui) e as folhas falam com os humanos, muitos deles é que não aprendem a escutar direito. Outros áudios entre cenas ajudam a costurar a narrativa do espetáculo, possibilitando uma linguagem híbrida. É uma narrativa contada por eles, é a voz deles e nós precisamos escutar os mais antigos, para que esses ensinamentos não se esqueçam. São circuitos de sonoridades entre a arte, a engenharia de computação e a música que te fazem escutar a sabedoria da vida e da terra, quem veio antes. O futuro é ancestral, assim diz Ailton Krenak.

A visualidade do espetáculo dialoga diretamente com a cenografia, todo o trabalho foi pensado em uma linguagem que mescla esteticamente o presente e o futuro. Os figurinos em neon - com destaque para as roupas dos carregadores - que carregam nas costas uma estética viva em Belém, as faixas de anúncios de festas. São roupas acesas, vestimentas que falam. A Mairi de hoje, Belém é barulhenta, colorida e caótica. É uma cidade que fala e escuta, mas muita gente não ouve e nem responde. Sobre esse par FALA/ESCUTA, seguimos no museu para falar das vozes em atuação. Durante a disciplina de Técnicas Vocais, um dos objetivos em sala de aula era sensibilizar a criação/fala/escuta do-no corpo para as potencialidades vocais individuais e coletivas. Como afirma Aleixo (2002):

a voz integrada ao corpo se manifesta como movimento, como interação e vida. As implicações sensíveis e sensoriais desta manifestação sonora do corpo podem ser observadas e, posteriormente, abordadas de modo a torná-las evidentes e potencializadas. Podemos considerar que, no âmbito da vocalidade poética a voz se manifesta em três dimensões fundamentais, sendo: sensível, dinâmica e poética. (ALEIXO, 2022, p. 34).

Essa dinamicidade vocal era uma busca constante, tanto para o trabalho em sala de aula, quanto na preparação para o espetáculo. Naquele momento em sala houveram induções sonoras que dialogavam com as matrizes originais e foram trabalhadas oposições importantes pros estados de voz, como espaço/estado. Uma grande teia de práticas, anotações, observações e escutas para melhor compor a artesania do ensino/direção - lugares de profundo cuidado e respeito desde quando fui aluna-atuante lá atrás (presta atenção nessa estrada e olha pra trás pra lembrar). Sempre defendi a justa balança entre técnica e expressão para compor voz. Voz é camada que precisa do apoio de respiração, alongamento, aquecimento, e isso envolve repetições. Voz é músculo que precisa ser exercitado e isso se faz com aberturas e entregas. O par voz/escuta só trabalha se estiver junto, o par direção/atuação só funciona de forma complementar. Mas antes disso, vem o ensino, o par professor/aluno que necessita trabalhar lado a lado (respeita o que veio antes e quem te ensinou a ter escuta ao teu próprio trabalho, seja em qual for a função).

Catalogando o trabalho em sala e posteriormente observando cada cena, percebia onde atuantes poderiam - e deveriam/conseguiriam - crescer cada vez mais com suas vozes e isso se descreve (SENTE) na imersão cênica. As museálias que desenvolvem cantos cruzados, tanto no início quanto no fim do espetáculo, recruzando suas vozes; o ator que entoa "eu sonhei"[5] a partir da abertura da vogal O, trazendo uma perspectiva de voz cabocla; a atriz que pressiona o peito a partir da respiração para falar da memória que lhe foi roubada e sua dor ancestral - quem perde a memória, também perde a voz e o coração. Mais à frente, a voz felina que chega a partir das induções sobre o que é ser uma onça em extinção: a partir da garganta, consegue-se uma voz arranhada e parcialmente cantada, trazendo o discurso entre a personagem-carregadora que queria mesmo era ser onça. Para Santos (2023), "os humanos não se sentem como entes do ser animal. Essa desconexão é um efeito da cosmofobia" (p. 19). Sorte das onças - e das vozes - que acabam nascendo e se desenvolvendo em outro lugar[6]. Logo após essa cena, o plano alto de uma lira e no jogo com o objeto em neon, outra atuante que se movimenta como um pássaro na gaiola - foi usada essa metáfora para o trabalho vocal na cena do artefato, na indução de assobios quebrados, no registro de escutas dos pássaros que não conseguem voar. As intenções das palavras no texto e as respirações nas pausas da personagem (FOTO? É como se cada pose/respiração correspondesse a um flash de registro da imagem estática, presa nesse museu e isso se refletiu na voz). As expressões faciais foram extremamente demarcadas e pausadas em determinadas frases ("com minha história interrompida!" / "agora me despeço de mim, sem identidade ou rumo"[7]), é sobre nem abrir a boca e mesmo assim a voz CHEGAR, a partir das ideias de um produto moldado e de um pássaro preso. O som de pássaro é o que abre a cena e o assobio é o que fecha, um trabalho competente e dedicado da atuação na busca por esses registros vocais, mais ainda com tudo isso se adaptando no jogo com a lira/moldura. Em outra cena, as vozes do andarilho e sua sombra (pensamento) trabalharam quase que em jogo de espelho, com respostas rápidas e transitando entre agudos e graves no mesmo discurso; em determinado momento, esse discurso está ENTRE o ator e seu personagem, quando ele emula o som de uma flauta a partir de uma indução proposta em sala de aula, cada estado vocal dessa cena era marcado por silêncios e guitarras, acompanhado de forma competente pela trilha do espetáculo, executada ao vivo com tambor, teclado e guitarra em todos os dias de apresentação (um parêntese para destacar o trabalho primoroso das sonoridades da cena, criando paisagens sonoras que conversaram com todo o espetáculo - em alguns momentos se podia simplesmente ouvir esse museu sem precisar assistir nenhuma cena, pois o som comportava todos os sentidos - são artistas de música autoral-experimental em Belém do Pará, alquimistas sonoros). Existe uma cena totalmente sem texto, onde o corpo-instinto joga com o som, são camadas e camadas de lixo neon amontoadas; naquele momento, o corpo da atuante se funde à grande rede de embalagens, sacolas plásticas, cubas de ovos, rótulos, garrafas pet e seu impacto visual/sonoro é evidente (dá uma voltinha nas ruas de Belém pra ver tanto lixo amontoado e sem descarte correto, te impacta também?). Se trata de uma pesquisa intensa.

Ao final, o reencontro de todos os seres do museu em uma grande catarse coletiva, entoada por contracantos - destaque para a cena do Seu Tupinambá, carregada de força vocal e simbólica - e os cantos lá no início se reencontrando novamente na descida do último manto. Durante o processo de direção, me chegou uma melodia dissonante, que entreguei para a voz certa. É quem sai do lixo para cantar a floresta, os sons ancestrais. São os apitos dos rituais que apontam as flechas, é o tambor que marca o tempo-outro. É um elenco/equipe entregue ao grande ritual da cena. Encerrando o espetáculo, o manto intitulado MAIRI VIVE anuncia quem estava lá (aqui em Belém do Pará, Amazônia Brasileira) muito antes de todos nós. As vozes são ditas, registradas e autorizadas por diversas lideranças indígenas, o processo teve curadoria do ator/pesquisador/professor e Doutorando em Artes pelo PPGARTES/UFPA Rudá Tupy. É preciso que cada processo artístico seja coerente, coeso, respeitoso e para que não esqueçamos aquelas/es que vieram muito antes da gente. Segue o caminho do rio e encontra o povo que veio antes de ti. A experiência de acompanhar o espetáculo por locais diferentes, fossem eles as passarelas do teatro ou o próprio chão do museu com o público resultou em 8 espetáculos distintos, com camadas diferentes.. Em teatro, ainda que seja o mesmo, cada espetáculo visto é sempre único. Foram várias vozes, caminhos e viagens dentro de um mesmo teatro/museu, isso sem o uso dos farmácos oferecidos ao público.

Nenhuma história se faz com apenas uma voz.[8] Foram/são muitas as vozes que pensaram, construíram e ajudaram a levantar este processo em várias frentes nos Cursos Técnicos. No curso de teatro, o respeito e agradecimento a quem tornou isso possível, a partir da encenação primorosa de Andréa Flores e Carmem Virgolino. As pesquisas delas estavam impressas e vivas nos corpos dos atuantes.

Este é meu primeiro texto como professora na escola e compondo a equipe de um espetáculo, nessa função desafiadora e complexa - porém cheia de aprendizados e observações - que é a Direção Vocal. Oportunidades são como flechas, é preciso empurrar o corpo pra trás, pra mirar mais adiante, voltar ao passado para enxergar o futuro. Foi por meio da sua força, seus cânticos e suas flechas que os povos originários resistiram e se protegeram por muitos anos, todas as referências e reverências a quem abriu os caminhos até nós todos chegarmos aqui.

Para concluir um bom texto-flecha: "eu lembrei que eu esqueci de onde eu vim."[9]

Eu não esqueci de onde vim e onde estou, ETDUFPA. Esse espetáculo TEM VOZ.

17 de abril de 2025


[1]Diretora Vocal no espetáculo IA - Inteligência Ancestral. Professora substituta na Escola de Teatro e Dança da UFPA. Atriz e ex-aluna formada pela Escola de Teatro e Dança da UFPA. Doutoranda em Artes - PPGARTES/UFPA.

[2] SILVA, Karimme. O Outro (no) Eu ou "Somos Todos Bichos". Disponível em: <https://tribunadocretino.blogspot.com/2016/09/o-outro-no-eu-ou-somos-todos-bichos-por_85.html>

[3] Todas as frases em itálico neste texto referem-se a textos dos atuantes em cena. Trecho do texto da atriz Ádria Catarina.

[4] Trecho do texto do ator Carlos Eduardo.

[5] Trecho do texto do ator Leandro Monteiro.

[6] Trecho do texto da atriz Kamylla Melo, adaptado.

[7] Trecho do texto da atriz Maria Celeste.

[8] Trecho do texto da atriz Marta Pederiva.

[9] Trecho do texto do ator Leandro Monteiro.

REFERÊNCIAS

ALEIXO, Fernando. Corporeidade da voz: aspectos do trabalho vocal para o ator. 2002.

SANTOS, Antônio Bispo dos. Cidades e Cosmofobia. IN: SANTOS, Antônio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. Ubu Editora, 2023.

SILVA, Karimme. O Outro (no) Eu ou "Somos Todos Bichos, 2016. Disponível em https://tribunadocretino.blogspot.com/2016/09/o-outro-no-eu-ou-somos-todos-bichos-por_85.html

Ficha Técnica

IA - INTELIGÊNCIA ANCESTRAL

Realização: 

Escola de Teatro e Dança da UFPA

Produção: Cursos Técnicos em Cenografia, Figurino e Teatro / Curso de Produção Cênica / Licenciatura em Teatro da ETDUFPA

Elenco:

Adria Catarina, Adriana Moura, Brenda Gonçalves, Brunno Euller, César Augusto Rocha, Dara Teles, Fernando Gomes, Gabriel Serrão, Jaiane Silva, Jéssica Brito, Ju Souza, Julianne Stael, Kaleb Nobre, Kaio Kelvin, Kamyla Mello, Karlos Eduardo, Leo Monteiro, Marcelo Rudolph, Maria Celeste, Maria Ester Ribeiro, Marta Pederiva, Suzi Lacerda e Yas Laranjas.

EQUIPE

Direção Cênica, Encenação e Dramaturgismo:

Andréa Flores e Carmem Virgolino
Assistente de Direção:

Bianca Brabo

Estagiários:

Adrielle Santana, Maurício Fernandes (Licenciatura em Teatro)

e Victor Amoras (Produção Cênica)

Consultoria Cênica:

Rudá Tupy

Direção Vocal:

Karimme Silva
Direção Musical e Dramaturgia Sonora:

Thales Branche

Direção Musical, Dramaturgia Sonora e Músicos de Cena:

Pratagy e Reiner

Músico de Cena:

Kadu Chavez

Instalação sonora Árvore das Identidades:

Flávio Siqueira e Pratagy
Direção de Visualidade:

Jorge Torres e Grazi Ribeiro
Dramaturgia:

Processo colaborativo da turma do Curso Técnico em Teatro (2023)
Vozes em off:

Glicéria Tupinambá, Marcilio Tupinambá, Cacique Gilson Tupinambá e Moara Tupinambá. Cenografia e Iluminação:

Coordenação:

Jorge Torres

Cenógrafos:

Beh Calvo e Kathleen Sannes

Iluminação: 

Beh Calvo

Figurino:

Coordenação:

Grazi Ribeiro

Figurinistas:

Paula Bastos e Yasmin Santos

Fotografia:

Ruthelly Valadares e Danielle Cascaes

Design do Cartaz:

Elaboração coletiva (estilizado por IA) | Arte: Julianne Stael

Apoio Cultural:

Gleyce Costa (Play Presentes) | Eduardo Cordeiro de Oliveira Júnior e Chel Silva (Bloco dos Americanos)