O espantalho, ou resposta a Saulo Sisnando - Por Arthur Ribeiro.

08/01/2018

Crítica em resposta a "Esses Críticos Cretinos", de Saulo Sisnando. (Ver TRILOGIA AO CRETINO)  

Arthur Ribeiro[1]

A impressão que tenho ao ler a Parte II da Trilogia ao Cretinointitulada "Esses críticos cretinos", de autoria de Saulo Sisnando, publicada no último domingo, 7, neste site, é que o autor inventou um espantalho para alfinetar. O texto se dedica a apontar supostos vícios de críticos, como se os críticos tentassem parecer mais espertos do que os realizadores das peças que criticam, mostrando-lhes como deveriam ter procedido e negando-se a apreciar a obra como uma escolha legítima de seus autores. Acontece que esse retrato em nada corresponde ao que de fato vem sendo produzido na crítica teatral de Belém.

Parece que Saulo se equivoca ao não distinguir uma crítica de um comentário de plateia feito em fim de espetáculo. Talvez seja verdade que muita gente saia das peças falando como ela deveria ter sido, mas essa é uma atitude tomada a partir de uma visão imediatista, pouco refletida, que tende a isolar elementos cênicos e analisá-los a priori. Quem exercita a escrita ensaística sobre as peças, como é meu caso e o dos cretinos da Tribuna, sabe que ela tem outra natureza: por surgir a um prazo mais longo e por buscar o isolamento, ela tende a criar uma análise mais holística, inseparável do próprio desenrolar do fio da linguagem.

Eu me esforço, mas, nos últimos dois ou três anos, período em que amadureci a escrita em meu blog e, paralelamente, a proposta da Tribuna do Cretino tomou contornos mais bem definidos, não consigo me lembrar de ter escrito ou lido sequer uma crítica que procurasse dirigir a direção, ou que destilasse veneno a respeito dos realizadores da peça. Pelo contrário: os melhores textos que lembro de ter lido foram escritos por críticos-espectadores de alguma forma capturados, ou mesmo encantados, com o que viram, encontrando categorias muito originais para descrever os elementos estéticos das peças, num ato de reverência, investindo as obras de seu próprio poder. E mesmo quando não é esse o caso, não percebo os autores se rendendo a uma verborragia gratuita, mas sim a um diálogo honesto, que não despreza a obra apresentada, e sim procura provocá-la a um desequilíbrio que permite, ao fim, que todos aprimorem o olhar sobre ela. Provavelmente, é por isso que o texto do Saulo não cita nome nenhum.

Talvez por esse desconhecimento, o autor repita aquele mesmo argumento sonolento que confunde o "fazer" e o "criticar". Eu, como vários autores da Tribuna, critico e faço (com a diferença de que pouca gente vai ver as minhas peças...), e não vejo sentido em dizer que é "mais difícil" executar. Aqui, de novo, os dois exercícios têm natureza muito diferente: um processo de espetáculo pressupõe um tempo dilatado, uma energia coletiva, choques, rupturas, acúmulos de discursos entre o autor, o diretor e os atores, diferentes respostas possíveis da plateia, enquanto uma crítica é eminentemente uma aventura solitária de reflexão, que, na atualidade, só precisa de computador e internet para chegar ao público. Mesmo assim, é temerário desprezar a crítica como um ato menor, já que várias tradições teatrais se firmaram com participação decisiva dela. As obras de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, por exemplo, são referências obrigatórias para entender a história do teatro brasileiro, o impacto das grandes peças, o trabalho dos grandes atores e diretores.

Tampouco me parece corresponder à realidade o argumento de Saulo de que as peças mostram o que mostram porque os autores resolveram mostrar daquela forma. Minha impressão, como ator, dramaturgo e diretor ainda iniciante, é que o teatro é uma arte desconcertante e misteriosa, em que cada elemento em cena que parece "resolvido" abre uma brecha para infinitas não-resoluções; cada afirmação positiva de uma dramaturgia oculta um oceano de outros sons e silêncios do qual os autores mal conhecem a superfície. Teria mesmo a crítica esse papel de se limitar ao que um autor quis dizer? Ou será que não devemos, ao contrário, tentar ir mais fundo nesse oceano, amplificar os dizeres dizendo o que quisermos?

Por fim, essa história de que em Belém a crítica vira "recadinho" também me é muito esquisita, pois a impressão pessoal que tenho, quando leio muita coisa escrita no eixo Rio-São Paulo, tida como uma cena teatral madura e prolífica, é que estamos mais avançados em vários quesitos. Houve um caso recente em que o crítico Miguel Arcanjo taxou de racista uma peça sobre questões raciais apresentada em um festival de São Paulo prendendo-se ao fato de não haver negros no elenco. O Kil Abreu, conhecido crítico de lá, fez um texto acusando a pobreza da argumentação, e o Miguel Arcanjo, ao invés de debater, preferiu se vitimizar, dizendo que deveria ser ouvido por ser o único negro a ter escrito crítica sobre a peça (is.gd/gaSqEY). Uma forma de discutir que eu pelo menos nunca vi por aqui, me levando a pensar que nossa crítica não se contaminou (ainda) pelo identitarismo autoritário. Onde estará essa crítica-mas-crítica-mesmo à qual o Saulo imputa tanta superioridade em relação à nossa? Caso não haja resposta, talvez o que esteja faltando seja ler com mais assiduidade o que temos escrito. Fica o convite.

8 de Janeiro de 2018.


[1] Ator, Administrador do blog "O teatro como ele é", Professor efetivo de Português Escola Municipal Rotary - Belém/Pará.