Sobre Febres Loucas e Breves – Por Edson Fernando

16/04/2025

Montagem Dança-Teatro: TRÊS

Montagem: Teatro de Apartamento

Edson Fernando[1]

O três é um número fundamental universalmente. Exprime uma ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmo ou no homem. (Chevalier, Gheerbrant, 2007, p.899).

Tive algumas sensações confusas e difusas por ocasião da apresentação de "TRÊS", na última quarta-feira (09.04.2025), no espaço cultural Teatro de Apartamento, que podem ser resumidas com a seguinte expressão: "Acho que já estive aqui". Músicas, atmosfera cênica, desenho de movimentos, visualidade, cenas, ausência da palavra, Piazzolla, "não me deixe"... todos esses detalhes, que me impregnaram a percepção durante a apresentação, começaram a ser equacionados, de algum modo, logo após o término da apresentação quando, então, ocorreu a roda de conversa com o elenco e o diretor da montagem, meu colega de turma do Curso Livre de Ator da ETDUFPA, Saulo Sisnando. Durante o bate papo, fora compartilhado um pouco do processo criativo de TRÊS e, segundo a própria equipe, trata-se de uma revisita e homenagem a "Violetango", de 1994, da Cia Atores Contemporâneos, dirigida e encenada por Miguel Santa Brígida e que tive o prazer de ser espectador por quase dez anos vindo depois a ter ainda o privilégio de atuar e contracenar ao lado de Rogê Paes, Guilherme Repilla, Cei Mello e da saudosa Silvia Leão. Além dessa referência direta a "Violetango", assumida pela encenação de "TRÊS", identifiquei também relação com "Valsa de Sangue", de 2002, da mesma companhia dirigida por Miguel Santa Brígida – nesta, especificamente a cena que contracenava com Rogê Paes sob a trilha "Ne Me Quitte Pas".

Por todas essas referências, que me envolvem diretamente nas montagens teatrais supracitadas, foi impossível contribuir durante a roda de conversa, pois se o fizesse minhas considerações fatalmente recairiam numa comparação técnica entre o que vi em TRÊS e o que vivi atuando em "Violetango" e "Valsa de Sangue". E comparar, neste caso, não me parece o caminho mais apropriado, seja por ocasião da roda de conversa ou mesmo agora quando escrevo estas linhas, passados alguns dias que me possibilitaram amadurecer as percepções. Portanto, não me darei a tarefa de traçar paralelos e comparações entre as montagens e sim tentar dialogar com o que a encenação de TRÊS me oportunizou pensar a partir do signo maior que me pulsou, isto é, o signo da "paixão".

O caminho inicial que escolhi para penetrar no signo da paixão que se desvela, aos meus olhos, a cada instante em TRÊS, foi buscar compreender o simbolismo do verbete "três", presente na obra coescrita por Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, "Dicionário de Símbolos". A pesquisa antropológica realizada pelos autores indica, no meu entender, a presença de alguns elementos recorrentes: "sacralidade/cosmogonia", "perfeição" e "sorte". Diversas culturas pelo mundo se relacionam com o "três" e derivam noções de "trindade", tríade e/ou "ternário", estabelecidos sob princípios espirituais, intelectuais, biológicos e/ou éticos.

Curioso notar que ao longo das quase quatro laudas que versam sobre esse verbete – cujo as linhas iniciais podem ser conferidas na primeira citação desta crítica – apenas num único momento o "três" aparece com conotação negativa quando associado entre os peúles – grupo étnico encontrado em várias populações da África Central –, ao "produto do incesto". Assim, mesmo agregando o "primeiro", o "segundo" e, evidentemente, o "terceiro", o simbolismo que recobre o "três" admiti, de modo pacífico, essa espécie de unidade-complexa e, porque não dizer contraditória, que suporta no seu interior elementos dispares em quase perfeita harmonia.

Sobre isso, cabe destacar que a visão espiritual/religiosa sobre o "três", presente em diversas culturas, parece exercer, pelo menos, algum efeito atenuante nessa aparente unidade-complexa-contraditória, recorrendo, evidentemente, a crença e a fé, senão como entender, por exemplo, que o "Pai", o "Filho" e o "Espírito Santo" são três em um, em perfeita harmonia, mesmo considerando identidade própria, natureza própria, entidade própria e trajetória própria nos escritos cristãos? Portanto, no meu entender, é pela fé que essa trindade se faz em perfeita harmonia, seja no cristianismo ou em outras espiritualidades/religiosidades professadas pela humanidade ao redor do mundo.

Infelizmente, o mesmo não pode ser dito quando escorremos a análise do plano divino para o plano demasiadamente humano: a unidade-complexa-contraditória, que antes se estabelecia em perfeita harmonia, agora se lê e se vê em aberta disputa, concorrência, competição, rivalidade, litígio, altercação etc. É como se quando as questões espirituais cedessem espaço para as questões humanas, que dispensam o uso da fé e se enraízam no universo das paixões, a complexidade do ternário implodisse qualquer possibilidade de convivência harmônica entre os seus elementos dispares ou, pelo menos, a radical diminuição de um equilíbrio duradouro e saudável entre seus elementos. Recorro ao pensamento do filósofo holandês Baruch Espinosa (1632-1677) para me ajudar a pensar o "três" na perspectiva das relações humanas.

Se alguém imagina que a coisa amada se liga a um outro com o mesmo vínculo de amizade ou com um vínculo mais estreito do que aquele com o qual só ele a desfrutava, será afetado de ódio para com a coisa amada e terá inveja do outro (Espinosa, 2009, p.61).

Evidentemente é preciso situar e compreender a citação acima dentro do plano das proposições elaboradas por Espinosa em sua "Ética", obra cujos conceitos-chaves que servirão para minha análise da montagem TRÊS são: "afeto", "desejo" e "paixão". Utilizarei, portanto, esses conceitos como lente para me ajudar a pensar a intrincada teia de afetos criada em cena por Alex Vilar, Leoci Medeiros e Luiza Monteiro, uma rede intensa de emoções que eclodem como febres loucas e breves. E quem nunca foi acometido por uma delas que atire a primeira pedra! Como um bom canceriano, desde cedo, conheci esse estado de agitação do espírito que enerva os sentidos e desestabiliza a lucidez. Portanto, não me cobrem sensatez nas percepções que se apresentam a seguir.

O afeto, que se diz pathema [paixão] do ânimo, é uma ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele, ideia pela qual, se presente, a própria mente é determinada a pensar uma coisa em vez de outra (Ibidem, p. 77).

É sob o signo da paixão que os TRÊS surgem desde o início, a beira da vastidão do oceano vermelho que lhes espreitará do primeiro até o último suspiro. Inicialmente em repouso, próximos uns dos outros, olhares ligeiramente serenos fitando o horizonte... Ella veste preto – vestido preto, sem mangas–, mas carrega no pulso uma gota do oceano voraz que lhes arrastará muito em breve; mas não se enganem, pois Ella também carrega entre as mãos mais que uma simples gota do mar, carrega ondas inteiras capazes de afogar o mais lúcido devoto de Apolo. Elle veste preto sobre o branco – calça preta, blusa branca e coleto preto sobre a blusa branca, ambas sem mangas. E, por fim, Elee veste preto e branco – calça preta e blusa branca de mangas comprida. Os três, inicialmente assim dispostos, parecem desfrutar de uma harmonia provisória, de um equilíbrio precário que é logo interrompido nos primeiros acordes de Piazzolla. A partir de então, tudo se precipita num jogo voraz de desejos incontroláveis que escalam níveis cada vez mais dramáticos numa espiral crescente, mas também repetitiva de "quereres" e "não quereres".

O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira. Explicação: (...) Compreendo, aqui, portanto, pelo nome de desejo todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do homem, que variam de acordo com o seu variável estado e que, não raramente, são a tal ponto opostos entre si que o homem é arrastado para todos os lados e não sabe para onde se dirigir (Ibidem, p.71).

Os três seguem por uma nau frágil e sem direção. As águas rapidamente se precipitam a partir dos primeiros acordes de Piazzolla. Ella trata de fazer jorrar as ondas que trazia por entre as mãos e que agora seguem em todas as direções, em todas as mãos, em todos os corações, em todos os corpos, em todas as possibilidades de navegação. Haverá realmente condições de navegabilidade em águas tão assustadoramente agitadas? A nau rapidamente se vê inundada e como náufragos desesperados em alto mar, nenhum deles consegue domar o ímpeto das correntezas, nenhum deles sequer parece querer navegar sob essas águas agitadas. E eles tem escolha? Qual a possibilidade de escolha para os que são arrastados pelas correntezas da paixão?

Chamo de servidão a impotência humana para regular e refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob seu próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é, muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior (Ibidem, p.78).

Em alto mar, avistam uma ilha distante, esperança de alguma salvação, de alguma saída possível. Mas ao mesmo tempo que tentam nadar em direção a ilha, também se precipitam em movimentos bruscos que afaga um, mas afoga o outro; acalma um, mas encoleriza o outro; anima um, mas entorpece o outro; acaricia um, mas apunha-la o outro; cuida de um, mas abandona o outro; abraça um, mas estrangula o outro; sussurra promessas pra um, mas amaldiçoa o outro; cura um, mas mata o outro; dança com um e com o outro... mas... e se dançasse com os dois ao mesmo tempo? E se curasse os dois? E se prometesse aos dois? E se abraçasse os dois? E se cuidasse dos dois? E se acariciasse os dois? E se animasse os dois? E se acalmasse os dois? E se afagasse os dois? E se nadassem juntos os três? Como se dança uma paixão a três?

A força de uma paixão ou de um afeto pode superar as outras ações do homem, ou sua potência, de tal maneira que este afeto permanece, obstinadamente, nele fixado (Ibidem, p.82).

Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado (Ibidem, p.82).

À medida que são afligidos por afetos que são paixões, os homens podem discrepar em natureza e, igualmente, sob a mesma condição, um único e mesmo homem é volúvel e inconstante (Ibidem, p.88).

Talvez a melhor formulação seja: é possível dançar uma paixão a três? As danças que já tive sob esta configuração me levam a não acreditar nesta possibilidade. Tudo fica muito confuso, muito intenso, muito desgastante... principalmente quando um dos vértices do triângulo não se reconhece e não se quer sob esta geometria. Então, como calcular os passos dessa dança quando os ângulos não convergem para o triângulo?

TRÊS, do início ao fim, me faz pensar que este cálculo é demasiadamente impraticável, pois mesmo quando conseguem aportar na ilha distante, Ella, Elle e Elee, já se encontram num ciclo vicioso de inúmeras tentativas obstinadas por encontrar o equilíbrio que nunca chega. Resta-lhes apenas o envio das mensagens engarrafadas em si mesmas e que nunca conseguirão transpor o oceano de todos os desejos. É um grito de socorro lançado ao mar, mas que os marujos experientes, certamente, não ouvirão, posto que já estão vacinados contra o canto das sereias.

Evoé

16 de abril de 2024

[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO;

Referências

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Tradução: Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.


ESPINOSA, Benedictus. Ética. Tradução: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Edutora, 2009. 

Ficha Técnica

TRÊS

Elenco:

Alex Vilar, Leoci Medeiros e Luiza Monteiro

Direção:

Saulo Sisnando

Dramaturgia:

Saulo Sisnando

Operação de efeitos sonoros:

César Augusto Rocha

Iluminação:

Matheus Caê

Cenários:

Flávio Ramos Moreira

Figurinos:

Grazi Ribeiro

Coreografia:

Criação Coletiva

Apoio e Contrarregragem:

Luana Paranhos

Registro Fotográfico:

Michel Ribeiro e Saulo Sisnando

Produção Executiva:

Flávio Ramos Moreira

Realização:

Teatro de Apartamento

Agradecimentos:

Luiz Thomaz Sarmento, Edson Aranha, Maby Aires, Mariana da Paz, Claudia Messeder, Marcelo Morges, Carmen Sisnando, Marina Dahas, Miguel Santa Brígida.