Teatro Periférico na Pós-Modernidade - Por R. Carlos S. Cruz.

05/09/2024

Leitura Dramática: "Lapsus"

Leitores: Marton Maués e Mário Zumba.

R. Carlos S. Cruz[1]

Não se deve culpar o espelho se a cara é torta – Provérbio Russo.

O ápice da Pandemia de Covid-19 coincidiu com o maior retrocesso político da História do Brasil nos últimos anos. Neste nefasto contexto vivíamos a Macro Política ancorada em mentalidade de: rapinagem, arrogância, truculência, fake news e negação da Ciência. Apoiado e incentivado pela necropolítica Oficial de Estado, incólume o anjo gris grassava o País ceifando vidas. O horror se estampava a cada momento, não necessariamente pelo medo detânatos, mormente pela cruel sensação de desamparo, em função da ausência de políticas científicas e dedicadas ao real enfrentamento da situação, e principalmente, pela falta de: empatia; competência e responsabilidade das lideranças políticas alçadas aos Poderes Executivo e Legislativo. Além da inépcia o governo central promovia sistemático boicote as medidas estabelecidas pela ONU via disseminação de notícias falsas sobre protocolos de segurança e exposições de líderes, como por exemplo, Tedros Adhanom, diretor da OMS.

Neste contexto de brutal crise econômica, social, existencial e caos político minuciosamente premeditado: as Artes foram fatores primordiais de alento espiritual, resistência e sobrevivência. Precisamente no momento em que nos encontrávamos no tênue limiar entre a lucidez e a loucura. A Arte veio nos trazer: esperança, fé e redenção, através do riso; pranto ou da reflexão. Isto nos leva a afirmar: NÃO EXISTE ARTE PELA ARTE: TODA ARTE É ENGAJADA SEJA PELA VIDA E LIBERDADE OU PELA MORTE E OS GRILHÕES.

A leitura dinâmica do texto foi feita no Nosso Pátio Cultural. Espaço artístico na residência de Cláudia Maués e Marcos Sousa. A produção e organização do espaço foi de Cláudia Maués e Patrícia Rodriguez com ajuda de familiares e amigos.

O texto foi apresentado por Mário Zumba e Marton Maués. O argumento do texto foi uma sugestão de Marton Maués ao ator e teatrólogo Mário Zumba. Assim tanto a redação como a apresentação foi de Mário Zumba que, também dirigiu o espetáculo.

Lacan em seus Escritos afirma que toda obra deve conter algo próprio do autor. Neste sentido, Lapsus é fiel à concepção Lacaniana apresentando-se como algo pulsante e profundamente engajado, por sua posição crítica à tradição, quanto ao aspecto relativo à identidade de gênero, orientação sexual e outras formas diversas de identidade no contexto da família contemporânea.

A obra é um idiossincrático mergulho na psiquê do homem brasileiro e revela: traumas; medos e contradições relacionados ao padrão clássico de comportamento masculino envolvendo preconceitos sexuais e de gênero nas inter-relações familiares.

O texto é básico, isto é, sem rebuscamentos, entretanto há apenas aparente simplicidade, pois, à medida que, se desenvolve aparecem múltiplos tons que se revelam como frequências rítmicas e notas dissonantes de um canto tão ancestral, quanto a humanidade, por isso mesmo assemelha-se a um espelho de mil faces que distorce, amplia e superdimensiona nossos erros e acertos. Dentro de uma certa perspectiva o texto pode ser comparado a obra de Paulo Freire, pois o pedagogo mergulha na complexidade das relações e formas de manutenção de privilégios sócios econômicos na Sociedade Capitalista, embora permaneça aparente sua simplicidade textual.

O teatrólogo penetra no frágil e complexo universo das representações e mentalidades humanas, particularmente no aspecto pertinente ao comportamento do homem tradicional brasileiro e seus conflitos internos e externos no contexto familiar. A obra é um importante e impactante instrumento de debate e reflexão, e se expressa, como um manifesto, na luta cotidiana por liberdade, autonomia e diversidade, principalmente no atual momento, em que, o despertar da mentalidade neofascista Mundial insiste em colocar em pauta a imposição de antigos padrões morais no tocante a vida e a liberdade sexual, que remontam a idade média europeia, ou no mínimo, à Inglaterra Vitoriana.

Por expressar o conflito entre o indivíduo e a sociedade organizada o texto nos remete às nossas origens, histórico antropológicas. A começar por Sófocles, passando por Shakespeare, Freud, Fanon, Celso Martinez, Nelson Rodrigues e outros e outras se estendendo até à pós-modernidade.

A complexidade do texto inicia com o título. Lapsus é uma palavra latina que, também, é amplamente usada na teoria psicanalítica: Para Freud o lapsus seria a revelação inconsciente de uma contradição interna de um pensamento escamoteado em si e extirpado da consciência.

O texto explora a questão da mente conturbada através da personagem do velho pai, que sofre de demência senil, onde fiapos de memórias subjacentes foram desconectados visando apagar fatos e experiências, possivelmente dolorosas de tênues e esgarçados vestígios da juventude. A psiquê do pai não apresenta somente problemas inerentes a infância e adolescência. À medida que, o padrão de comportamento chauvinista se estende e se expressa, também na vida adulta e até a velhice, sob a condição de pai de um homem, que não aceita e não segue as determinações normativas e regras sociais relativas à sua conduta de vida e sexualidade. O idoso, também tem seus segredos traumáticos, provável herança do longínquo passado quando criança e adolescente. Isto é sumamente importante, pois o ato falho se sobressai, quando o idoso realmente não lembra - ou finge - que a esposa morreu, possivelmente por conta do choque de posições entre pai e filho relacionados à orientação sexual do filho e como consequência da visão conservadora do pai. Ou mesmo, quando não lembra o nome de seu amigo de infância ou adolescência.

Em síntese, o texto é um excelente libelo contra uma estrutura de Sociedade, ainda baseada em valores arcaicos. Uma denúncia firme contra o machismo como elemento baseado na brutalidade e imposição da vontade masculina.

O machismo como padrão comportamental que gera espectros de longos e múltiplos alcances, e se mostra como uma força incapaz para cauterizar feridas além da superficialidade. Revelando-se também, como um complexo de ações, que por sua inflexibilidade não percebe os problemas familiares, por meio de um olhar equidistante, contextualizado e humanizado. Por isso o machismo é o um dos principais vetores de profundos traumas, que por sua prepotência e miopia, não consegue avançar além da superfície dos problemas de relacionamentos. Isto é, não percebe que a essência das contradições familiares tem causas mais profundas, e que, entre elas estão a falta de: empatia, respeito e solidariedade ao comportamento diferenciado. O machismo é tão prejudicial que por norma gera nos homens, e também, em algumas mulheres uma casca, uma carapaça, que se reforça como uma terrível e enganosa proteção, para que, não exponham suas fragilidades emocionais. Em síntese, o machismo é um exemplo fatídico de desumanização. E isso é evidente em diversos momentos da obra, por exemplo, no fato do pai registrar o filho como Diogo em contradição ao acordo com a esposa de registrá-lo como Diego. O mesmo aspecto se evidencia no momento em que o pai fragilizado pela solidão e remorsos, finalmente lembra que o nome do seu amigo de infância era Diego. Entretanto, o texto não é somente angústia e dor, pois se alternam momentos de pura emoção e êxtase, mesmo sendo um espetáculo não encenado.

Neste momento se confirma a habilidade artística dos atores que operam a redenção: quando o pai esmagado por tanta dor e sofrimento pede perdão, e o filho mesmo vilipendiado e sofrido perdoa. Aqui o texto e o espetáculo conseguem finalmente remeter-nos ao caminho para a verdadeira humanização no sentido clássico e contemporâneo. Isto é, a urgente necessidade de irmos vagarosamente desfolhando e eliminando as concretas camadas de ódio e ressentimentos históricos que petrificam, e por isso mesmo, putrificam nossas reais emoções. Mostra-nos que só o amor despido de seculares preconceitos, herdados da tradição judaico cristã e outras, talvez mais tangenciais será capaz de redimir a humanidade da estupidez, que nos bloqueia a condição plena, para a construção de uma sociedade baseada no respeito às diferenças de: classes; étnicas; religiosas e sexuais e na possibilidade real de busca do arquétipo de felicidade.

8 de junho de 2024.

[1] Professor aposentado de Sociologia e História da rede privada e pública do Estado do Pará.

Ficha Técnica

Elenco:

Mario Zumba e Marton Maués

Texto:

Mario Zumba

Direção:

Marton Maués

Execução do tema musical instrumental:

Luiz Parda