Um belo e robusto cavalo, que dança desajeitadamente – Por Taion Almeida
Montagem Teatral. O Homem e o Cavalo.
Montagem de conclusão dos cursos técnicos da ETDUFPA - Cenografia, Figurino e Ator.
Taion Almeida[1]
A FILA - Estávamos há um bom tempo em pé na frente do Teatro Claudio Barradas, tentando fugir da chuva que caía naquela noite de domingo, por volta das 20h. Não sabia absolutamente o que esperar. Me movi ao teatro sem sequer procurar ler a sinopse do espetáculo que assistiria para tentar apreender dele o que pudesse me provocar durante sua apresentação - uma prática que há algum tempo mantenho na minha relação com o cinema.
Aquela altura, minutos antes do horário da sessão seguinte, a única informação que eu tinha sobre o espetáculo eram aquelas que vazavam do interior do teatro - uso frequente e intenso de sonoplastias e trilha sonora mecânica. Me perguntava se o espetáculo era, efetivamente, tão longo que se encerrava praticamente no horário de início da sessão seguinte ou se eles tiveram algum atraso.
Após ser brindado com uma série de sonoplastias e músicas - aparentemente desconexas - uma movimentação se inicia - movimentação nos portões laterais do teatro, uma sessão se encerrava e outra se preparava para começar do lado do teatro. Parece que a entrada é por ali.
Já fiquei curioso - se a entrada é pela lateral, a proposta de palco deve usar a parede lateral oposta do teatro como área de atuação. Ou algo parecido. Adoro experiências espaciais - mas sou bem chato no julgamento delas, não nego. A ousadia ganhava minha simpatia, precisava saber se ia me manter simpático após ver como ela se comportava em cena. A demora na fila incomodava. Como poderia ser tão difícil trocar de uma sessão para outra?
A ENTRADA - Ao entrar no teatro sou arrebatado pela ambiência construída. Em meio a uma paisagem sombria, um ator travestido de Sátiro e um grupo de atores que com seus corpos e adereços de cena constroem a figura de uma cobra grande feita de miriti nos captura de imediato. Melhor boa impressão impossível! Quando as portas se fecham e o espetáculo realmente começa, vislumbro do texto proferido pelo Sátiro referências diretas ao texto do livro bíblico do apocalipse. Muito bem, me preparo para uma experiência intensa e conceitual (e sinto pena da bebê na platéia, cujos pais levaram pra ver o espetáculo e que, assustada, começa a chorar na primeira cena).
Mas a cena rapidamente muda. E o gigantesco coro de atores entra para uma cena de orgia simulada. Os figurinos básicos neutros combinados com adereços que exalam desgaste criam uma aura torpe de decadência e ressignificação forte. Realmente estou capturado pela visualidade do espetáculo. Até esse momento não sei do que trata o espetáculo, mas ele me prendeu de uma tal forma que mal posso esperar para descobrir sobre o que versa. Então o primeiro ator abre a boca para dar o texto. Está vestido como uma travesti em um grupo de 4 travestis que lembram, vagamente, as Guerreiras Mágicas de Rayearth (antigo desenho animado japonês, memória afetiva do crítico).
A JORNADA - Estou encantado pela ambiência, pela luz, pelo figurino, pela exploração do espaço, mas quando o texto surge em cena... Alguma coisa tropeça e cai do alto da expectativa montada. Nos textos e marcações saltam à vista estereótipos e lugares comuns no discurso e fala de alguns personagens. O espetáculo abraça o tom cômico e a mensagem de protesto. Protesto em relação à situação política do país e a hipocrisia no nível da sociedade individual, coletivo e institucional . Mas a crítica é feita, na maior parte do tempo, abrindo mão da sutileza e elegância.
A mensagem não é atirada como um alimento cru, que ainda será processado e transformado em refeição pelo espectador, mas sim como um pedaço de bolo alimentar já mastigado e dissolvido na saliva de outra boca. E definitivamente não é uma forma agradável de se alimentar - tanto pelo aspecto desconfortável quanto por aparentar duvidar da capacidade de cada um de processar o alimento da maneira que melhor preferir. Inclusive abrindo mão de engolir tudo ao final, se for o caso.
Após alguns momentos, e sucessão de esquetes, me volta à cabeça a fila e as perguntas que me fazia lá do lado de fora. Muita coisa transcorre em cena. E muita coisa não parece ter algum motivo real de estar ali. O signo mais forte do espetáculo, daquele início, até o seu final, se torna pra mim o excesso: os fatores que conectam a demora da sessão anterior, a demora pra entrar no teatro, e a demora pro próprio espetáculo decolar e o cansaço ao seu final. Uma soma de excessos acaba reduzindo a força de momentos fantásticos em cena e tirando o foco de mensagens importantes proferidas em meio a um texto, no geral, pouco envolvente.
É difícil fazer uma crítica fechada ao texto do espetáculo, porque há coisa demais ocorrendo. Esquetes que cativam pela sutileza e mensagem elegante são soterradas por diversas outras mal conectadas, pouco inspiradas e aparentemente perdidas no meio de tudo. Parece que todas as sugestões apresentadas de cena durante o processo de construção do espetáculo, foram aceitas sem nenhum corte. Por mais que não acrescentassem nada a ele.
A crítica social se divide em três níveis - sociedade belenense (com a menção de vários personagens conhecidos, como políticos e artistas da terra) ora ao brasileiro (enfocando principalmente nos políticos) ora ao ser humano como um todo - aqui enfocando em conceitos filosóficos e sociais. E é nesse último que o espetáculo atinge seu nível mais alto de qualidade. As referências locais parecem forçadas em cena, e são feitas, no geral, com pouca verdade. As críticas de âmbito nacional soam repetitivas. Nada muito diferente, ou melhor, do que encontramos com facilidade nas redes sociais.
O aspecto universal, por outro lado, se destaca do restante do espetáculo. Quando se propõe a discutir que os problemas da sociedade vão além dos políticos ou mesmo do sistema econômico vigente - o espetáculo que critica o capitalismo e consumismo se abre a criticar também o socialismo histórico. O apego ou repulsa cega à religião também é tratada. São temas pertinentes e são os momentos em que o espetáculo se aproxima da sutileza. E com isso cresce. Mas o exagero não poupou totalmente esse pedaço do espetáculo.
Algumas das cenas mais marcantes do espetáculo envolvem criticas universais e personagens femininas. A cena em que Cleópatra atravessa o teatro como um estandarte pendurado no alto de uma caravela, cantando belamente sobre a condição de violência que é ser e viver como mulher em nossos dias. O entorno é magnânimo com um grande corpo de atores rodeando a caravela. Cenografia, iluminação e sonoplastia constroem um momento realmente único em sua grandeza e beleza plástica.
Outro momento, totalmente diferente, se dá quando de olhos vedados, se apresenta "a verdade" ao público. Após retirar sua venda discursa, entre gargalhadas - difíceis de distinguir entre proposta cênica e uma reação emocional espontânea - discursa sobre não existir "uma verdade" e o fato de cada um ser dono da verdade. Tudo para encerrar, afirmando entre risos incontidos - "mas EU sou a verdade!". A cena é composta apenas de um feixe de luz iluminando a atriz num teatro envolto na escuridão. Nos prende, nos cativa e nos envolve com um texto que parece dizer muito pouco, mas na sua sutileza, diz muito.
Essas duas cenas guardariam mais força se não fosse o excesso de outras cenas pouco objetivas que quebram a energia do espetáculo e cansam o público. Sentia que o espetáculo não justificava suas mais de duas horas de duração. O trabalho dos atores é muito bom, na média, as vezes suplantando com carisma cenas pouco inspiradas.
A sonoplastia que impressiona pela agilidade em alguns momentos, em outra satura pela gratuidade, não acrescentando às cenas nem profundidade nem conteúdo novo. Por vezes parece surgir como uma muleta: gerando riso ou espanto apenas pela referência cultural abrupta. O efeito é atingido algumas vezes, mas de tanto se repetir o procedimento cansa.
Esse exagero de exageros acaba tornando mais difícil o acesso ao nó central da trama. Embora jogue com o absurdo, a espetáculo narra uma jornada do núcleo central dos personagens em direção a algo. Mas o excesso de informação em cena fazia o eixo central ficar perdido. Ao final de certa cena o teatro irrompe em aplausos como se o espetáculo tivesse chegado ao seu desfecho... sendo surpreendido com os atores voltando a cena e o espetáculo seguindo. Ninguém parecia saber para que desfecho o espetáculo rumava.
A SAÍDA - Quando "O Homem e o Cavalo" finalmente chegou ao final, os habituais aplausos demoraram a começar. Fiquei em dúvida se aquele era realmente o fim e só entendi assim quando os atores se despiram de todos os adereços e se viraram para cumprimentar a platéia. Os aplausos vieram, mas foram um tanto mais tímidos do que na primeira vez que o espetáculo parecia ter terminado. A plateia parecia cansada. Assim como o elenco após duas sessões seguidas de um espetáculo muito exigente do ponto de vista físico e técnico.
Para mim, a experiência de assistir "O Homem e o Cavalo" não foi ruim, mas penso que a avaliação sobre gostar ou não do espetáculo vai depender muito de como a pessoa lida com os excessos em cena. A cenografia, figurino e maquiagem são imensamente elogiáveis, assim como o trabalho da maioria dos atores. A bebê, que parecia perdida num espetáculo de adultos, se encantou com o espetáculo e não só chamou como também recebeu atenção e interação de vários atores, num jogo cênico espontâneo e muito bem amarrado. Mas a forma do espetáculo cansa - talvez uma tesoura para cortar excessos e limitar o espetáculo ao essencial enriquecesse o resultado final.
Você sente no final o alívio de ter saído de uma longa fila com uma linda caixa, que guarda alguma coisa, em mãos. Você não sabe o conteúdo dessa caixa nem antes, nem logo após sair da fila. Mas a beleza da caixa e a expectativa de um presente pode ser o bastante para muitos sentirem que valeu a pena a espera.
03 de Fevereiro de 2018.
[1] Egresso do Curso Técnico de Cenografia;Jjornalista independente; Participante do Minicurso "Por uma crítica menor".
Montagem:
O Homem e o Cavalo
Direção de Atores e Encenação:
Paulo Santana e Marluce Oliveira
Direção de Visualidade:
Iara Regina
Criação de Sonoplastia e Cartaz:
Raphael Andrade
Operação e Criação de Sonoplastia:
Juliana Bentes.
Projeto de iluminação:
Bolyvar, Manu, Leo, Humberto e Luan
Operação de mesa de luz:
Bolyvar
Criação de Figurino:
Iara Mendonça, Isabella Vallentina, Rosiete Santos, Thais Sales.
Assistentes de Figurino:
Sônia Decolores, Juliana Bendes, Bruno Sacramento, Flávia Flor.
Criação de Cenografia:
Boliyvar Moreira, Léo Andrade, Luan Artpay e Manuela Dela. Humberto Malaquias.
Assistentes de cenografia:
Madu Santos, Paulo Bico, Winnie Rodrigues, Manuela Dela.
Elenco:
Aj Takashi, Jeff Moraes, Ysamy Charchar, Yuri Granha, Marvin Muniz, Loba Rodrigues, Igor Moura, Joed Caldas, Bonelly Pignatário, Felipe Almeida, Romana Mello, Luana Oliveira, Tarsila Amaral, Sandra Wellem, Hudson dos Passos, Ruber Sarmento, Enoque Paulino, Marina Lamarão, Renato Ferber, Helaine Sena, Marina Gusmão, Simon bayssat, Cinara Moraes, Enzo Burlos, Lucas Serejo, Valéria Lima,Leandra Lee.
Estagiários do Curso de Licenciatura em Teatro:
Isabella Valentina, Thiago Batista, Gabriel Luz,
Tais Sawaki, Raphael Andrade e Joyse Carvalho.